O que dizer? Que partilho com o autor, gravadas para sempre na memória, as chocantes imagens com que me defrontei sertão a dentro - eu, esse carioca classe média – nas andanças promovidas por meus pais periodicamente nas férias?
Não sei. Só sei que, sem me fazer surdo às críticas segundo as quais, antes de irrigar, deveriámos ter distribuido a terra, olho esperançoso para o projeto em andamento. Sei que me pergunto: distribuir terras áridas nos levariam aonde, se depois não viesse a água? E também: tendo a chance de trazer a água, não seria melhor fazê-lo, e depois batalhar pela organização dos sertanejos e pela divisão da terra, em um cenário em que as populações estarão menos enfraquecidas?
O sertão vai mesmo virar mar?
Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo
Estimados milhares de leitores. Pois a notícia da semana foi brilhantemente reportada pelo meu, o seu, o nosso, Terra Magazine, com o enviado especial mesmo Bob Fernandes narrando a saga da Coluna Lula em visita às obras de transposição do rio São Francisco. Não sei o que vocês pensaram, mas eu sentei pra ler melhor.
Então era pra valer? Então eles vão mesmo fazer o São Francisco dar a volta e ir irrigar o sertão desaquificado que vive no nosso imaginário de brasileiros?
Caramba!
Porque não sei como os milhares de leitores reagiram ao debate, tempos atrás, sobre a Transposição ou Não-Transposição, em um drama shakespeareano com sotaque do sertão. Do lado de cá do rio, nordestinos terminantemente contra. Do lado de lá do rio, nordestinos completamente a favor. O que desempatou a questão, ao menos para esse colunista, foi a greve de fome, ou de sede, agora não lembro, de um bispo da região.
Aqui na minha luxuosa laje em Pinheiros, onde falta tudo, mas nunca água, se bispo ou a Veja é contra, automaticamente sou a favor. Afinal, eles são contra uma enorme lista de coisas que eu acho essencialmente boas, tais como o sexo, no caso de bispos; e o resto, no caso da Veja. Pronto, passei a defender desde criancinha a transposição, a liquiquificação, a remoção, a despoluição, enfim, qualquer coisa com ão e, portanto, rimasse com sertão, em especial, algo disposto a acabar com o sertão do sertão, que pra mim, sempre foi a seca.
Quando eu era menino, lá no distante século 12, lia e relia um romance chamado A Aldeia Sagrada, um raro livro juvenil que meus pais se deram ao cuidado de me dar. Na maior parte do tempo era pancadaria mesmo, Faulkner, Machado, B.Traven, Cervantes. Nunca meus pais se preocuparam em me proporcionar leituras de inspiração para jovens, para a minha sorte, e ainda não havia Pedro Bandeira, novamente minha sorte. A Aldeia Sagrada era a história de um menino que era expulso da fazendinha pela seca e saia sertão a dentro, chegando até o Antonio Conselheiro e Canudos.
Canudos, minha gente, foi um dos mais terríveis momentos da nossa história, e para a sorte da nossa história, houve Euclides da Cunha. Leiam Os Sertões, sentados. Contemplem a beleza do texto e o terrível da história, nossa história.
Nunca esqueci aquela Canudos, nunca esqueci a Matadeira, nunca esqueci a imagem em mau desenho do Conselheiro, no livro. E ele dizia que o sertão iria vivar mar, e o mar iria virar sertão, no que, para ele, parecia ser uma coisa ruim.
Não sei quanto ao mar virar sertão, o que parece um tanto dramático, especialmente para os peixes e outros desacostumados com a baixa umidade. Mas o sertão virar mar, sempre, sempre mesmo, me pareceu uma ótima idéia.
Uma das passagens que mais me impressionava no livro, era quando os retirantes, mais uma palavra desconhecida, como cacimba, atacavam uma vaca e a comiam, mortos de fome.
Eu, menino crescendo da serra gaúcha, me sentava pensando, como, como, como? Mas não é a sede o problema? Por que eles sentem fome, e ainda por cima num calorão danado desses?
Meninos gaúchos, em especial na serra italiana, não eram muito treinados no que fosse fome, muito menos sede. Nosso maior perigo, creio, era overdosar em polenta ou doce de uva!
Anos mais tarde meu pai resolveu curar essa nossa ingenuidade, colocando a mim e irmãos em um ônibus, para nos levar em alegre bando de retirantes ao contrário até a Bahia. Lembro de olhar as casinhas de barro com teto de nada, lembro de ver os campos marrons, de uma cor que eu nunca teria imaginado, crescido no verde absoluto da serra sulista, lembro de ver as carnes penduradas em vigas, e descobrir que aquilo era um açougue. Lembro de ver as crianças e as barrigas delas. Dali fomos a Salvador e à praia e coqueiros e todo o tropicalismo disponível. Mas nunca esqueci do resto.
E, quando falaram em transposição, me veio a memória daquela viagem, e de tudo que o meu país precisa fazer por ele mesmo, antes de virar uma outra coisa, onde fome e sede sejam mesmo memórias distantes, como Canudos. Essas memórias mais o bispo eram tudo que eu precisava e passei a ansiar pelo momento em que o Velho Chico, como chamam, fosse se meter aridez adentro, transformando o sertão em um pampa, unindo a minha infância com o futuro.
Pois parece que começou e agora vai em frente! Sentei.
Nao sei o que os milhares de leitores sentem, ou pensam. Imagino que aqueles que me escrever para dizer que são orgulhosos leitores da Veja estejam achando tudo um horror. Pois eu escondo uma lágrima furtiva e digo a todos que sinto muita alegria por ser brasileiro, por saber que estamos fazendo alguma coisa sobre o que existe de mais arcaico e profundo em nosso imaginário. Se vai custar bilhões, ora me deixem em paz! O que não custa bilhões nesses tempos inflacionários? Tirar petróleo vai custar bilhões e até a Veja acha uma boa. Enviar água pode custar o que custar, é água, minha gente. Se vai ajudar os coronéis, como dizem muitos, duvido. Coronel que é coronel gosta de seca perguntem ao Sarney se ele não adora uma sequina, uma secona? Na seca as pessoas se fragilizam e os mais fortes mandam. Na abundância, quem mais cresce é a dignidade. Olhem o que o povo do sertão fez com o PFL, assim que ganhou um folegozinho? Desvotou tanto que eles mudaram de nome, para esse ridículo e sem-noção Democratas! Ponham água lá que o povo vai saber o que fazer com ela.
Não que isso aconteça com leveza e doçura. Água, onde não existe, é mais do que tudo. Quem viu o Chinatown, do agora preso Polansky, viu um filme cujo pano de fundo era a luta pela água na California.
Algo assim vai acontecer, mas uma coisa é brigar pelo que não existe, e parte da inação das pessoas do sertão pode estar ligada a esse vazio. Outra coisa é brigar pelo que finalmente vai chegar, e nessa hora, tenho a certeza de que as pessoas de lá vão saber se organizar e garantir o que é seu, de direito.
Nos anos 30 foi o grande presidente Roosevelt quem fez os grandes projetos que levaram água, ou a controlaram, e energia para o empobrecido Sul americano, criando um país mais completo.
Agora é a nossa vez, e não pode ser surpresa que quem conduz o processo é nada mais nada menos do que mais brilhante filho do sertão, o sobrevivente da falta de água e maior estadista do mundo de hoje, na opinião do mundo de hoje, mesmo que não na opinião da Veja. Ele é a maior lembrança do que o sertão é capaz de produzir, desde que minimamente irrigado.
Esse ex-menino da serra aqui, filho do excesso de água e de verde, só pode se sentir um sujeito um pouco melhor, por conta do verde que espera que logo, logo passe a surgir em outro canto que ele conheceu de passagem, e espera nunca, nunca mais ver do mesmo jeito. Quando isso acontecer, finalmente, e quando pararem de queimar o verde amazônico, finalmente, estaremos chegando lá, dessa vez, pela primeira vez, todos nós, brasileiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário