Talvez não.
Isso mesmo. Vou repetir: talvez a gente não pague tributos demais pelos serviços que os governos prestam. Em outras palavras, aquela verdade sabida segundo a qual a gente pagaria caro por serviços de péssima qualidade pode ser uma ilusão.
Antes de me xingar, tente ler o texto abaixo, assim como este outro: A carga tributária e o discurso fácil da falta de vontade política. Eles tentam revelar outra perspectiva sobre a questão, baseada na indicação de uma falácia matemática e na colação de alguns dados para comparação.
De início, porém, uma ressalva: isto não é uma tese, mas apenas um textinho impertinente num blog; e, obviamente, seu objeto é restrito. Ele tratará de apenas uma das muitas questões suscitadas pelo sistema tributário brasileiro: a suposta desproporcionalidade entre a carga tributária (confundida com montante de tributos pagos) e a qualidade dos serviços públicos prestados.
Tal opção, entretanto, não importa menosprezo por outras questões, tais como: a acachapante complexidade do nosso sistema tributário; a injusta distribuição da carga tributária; e a desvantagem competitiva, em âmbito internacional, de uma carga tributária elevada. Trata-se apenas de tentar jogar uma luz sobre um ponto específico, acerca do qual existe uma mistificação que atrapalha a discussão dos demais.
Essa mistificação, aliás, tem um outro efeito, que transborda a questão especificamente tributária. A premissa de que os governos brasileiros cobram mais tributos que em outros lugares tem usualmente induzido a conclusão de que não falta dinheiro para a prestação de nenhum serviço. É a velha ideia de que "dinheiro existe; o que falta é vontade política; o que falta é competência". E se os recursos forem realmente mais escassos que nos países que adotamos como parâmetro?
Dos arquivos do blog:
Desde a implantação do Bolsa Família, a Taxa de Natalidade já caiu 25%
Mas, voltando, o ponto é o seguinte: será que nós, brasileiros, pagamos tributos demais em troca de serviços sem qualidade? Ou então, e já utilizando a frase que tenta induzir, com uma falácia, a resposta positiva: “o Brasil tem uma carga tributária de 1º mundo e serviços de 3º mundo?”
O discurso comum, divulgado quase diariamente pelos meios de comunicação, afirma exatamente isto: que o Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo; e que, apesar de ter carga tributária de país rico, tem serviços públicos de país de terceiro mundo. Como se uma coisa tivesse muito a ver com a outra; como se alguém (governos, inclusive) pagasse ou custeasse algo com porcentagens.
O que costumamos chamar de carga tributária nada mais é que uma referência à fração, ao percentual, do PIB apropriado pelos governos [1] por meio da cobrança de tributos. Trata-se, na verdade, de uma proporção entre a arrecadação de tributos e o PIB do país, expresso por meio de uma porcentagem.
E é aí que mora a falácia: comparam-se grandezas relativas, sem levar em conta aquilo a que elas se referem, o dado concreto, ou seja, o PIB. Desconsideram-se as diferenças entre os PIBs de cada país e comparam-se os percentuais dos PIBs (carga tributária) que as sociedades pagam pelos serviços, como se o preço de algo pudesse ser expresso em frações – além de tudo, aplicadas sobre totais diferentes.
Imagine, por exemplo, que você recebeu duas propostas de trabalho inconciliáveis: numa, a remuneração será de 15% do subsídio de Ministro do STF [2]; na outra, será de 30% do piso salarial do magistério [3]. Pela lógica normalmente utilizada na comparação de cargas tributárias, a escolha teria que recair sobre a segunda proposta – afinal, comparando-se as frações, 30% é maior que 15%. Só que, porque você esqueceu de levar em conta o dado concreto a que o percentual se refere (lá, o PIB; aqui, o salário de referência), você teria uma remuneração 9 vezes menor. [4]
É óbvio, portanto, que o que importa, seja em termos do valor pago por um serviço, seja em termos de fundos disponíveis para que um governo preste os serviços públicos, não é um valor abstrato, um percentual de carga tributária. Serviços são pagos - e, pela ótica do prestador, são custeados - com um valor em espécie, que a lógica da comparação de cargas tributárias desconsidera.
Vamos a um exemplo prático.
O Brasil tem uma carga tributária de cerca de 34,30% do PIB. A carga tributária dos EUA é de 24% [5]. Segundo a falácia apontada, isso significaria que os serviços públicos aqui são caros em relação aos prestados lá. E mais, significaria que o gestor público brasileiro é incompetente (ou ladrão), já que não consegue prestar serviços comparáveis aos norte-americanos, apesar de dispor de mais tributos.
O problema é que esta análise facciosa esquece que o PIB norte-americano (U$ 15,3 trilhões) é quase 7 vezes maior que o PIB brasileiro (U$ 2,2 trilhões) [6]. Ou seja, para prestar os serviços públicos sob sua responsabilidade, o incompetente gestor brasileiro dispõe de cerca de 20% dos recursos postos à disposição dos gestores norte-americanos para o mesmo fim – isso se levarmos em conta só a arrecadação de tributos e deixarmos de lado a capacidade de endividamento quase infinita dos EUA.
E, aí, superada a falácia da comparação de cargas tributárias, fica a pergunta: dá para esperar serviços de 1º mundo (dos EUA, por exemplo) com uma arrecadação 5 vezes menor? Levando em conta que ela paga apenas 1/5 do montante de tributos pagos pela norte-americana, a sociedade brasileira realmente paga caro pelos serviços que recebe?
Ainda dá pra gente dizer, como até mesmo alguns políticos fazem, que, como temos uma das maiores cargas tributárias do mundo: “é obvio que o dinheiro para tal e tal serviços existem; o que falta é competência; ou o que falta é vontade política”?
É claro que temos também problemas de gestão; é claro, também, que a corrupção e a sonegação representam enormes entraves; é claro que, muitas vezes, os gestores não estão interessados em resolver os problemas. Mas a resposta fácil, de que a carga tributária indica que sempre existem recursos para “serviços de 1º mundo”, é falsa. E presos a ela, sem superá-la, nunca construiremos soluções para os problemas reais – como a escassez de recursos, por exemplo.
E o caso dos EUA fornece apenas um exemplo; o mais óbvio, pela grande diferença na arrecadação absoluta, mas não o mais eloquente, se considerados outros fatores, como a população atendida e o território no qual ela se distribui. A comparação da situação brasileira com esses outros exemplos pode ser bem interessante para superarmos esta paralisante falácia da carga tributária como índice de volume de recursos disponíveis para a prestação de serviços públicos.
Contudo, como este texto já está bastante longo, os outros dados e comparações foram apresentados nesta outra publicação: A carga tributária e o discurso fácil da falta de vontade política.
Fica aqui, entretanto, um petisco.
Tendo em vista uma dupla coincidência (de carga tributária e de tamanho do PIB), o caso do Reino Unido fornece um exemplo interessante. Isso porque, considerada apenas a arrecadação de tributos, os gestores dos dois países dispõem de montantes de recursos equivalentes para prestarem seus serviços - o que, não há como não reconhecer, contrariaria tudo que foi dito acima. Afinal, com os mesmo U$ 800 bilhões que o Brasil arrecada, o Reino Unido consegue prestar serviços muito melhores.
Mas essa análise apresada não atenta para (pelo menos) duas (das muitas) diferenças entre os dois países, que representam uma brutal disparidade nos desafios apresentados aos dois Estados. A população do Brasil é o triplo da que tem o Reino Unido, cujo território, além disso, é mais de 30 vezes menor que o nosso. Ou seja, com uma mesma arrecadação, o Estado brasileiro deve prestar serviços para o triplo de pessoas, espalhadas por um território 30 vezes maior [7].
A situação resultante é mais ou menos esta:
Ou seja, levando em conta os tamanhos das populações, para que os governos brasileiros dispusessem de um montante de recursos equivalente ao posto a disposição dos governos ingleses, seria necessário uma arrecadação de cerca de U$ 2,5 trilhões, valor maior que o nosso PIB anual. Aliás, mantida a carga tributária atual, esse volume de arrecadação exigiria um PIB da ordem dos U$ 7 trilhões, que é o dobro do produto interno da Alemanha.
E a pergunta martela, será que "os recursos existem, mas somos incompetentes para transformá-los em serviços decentes"?
PS: este texto provavelmente só existe porque, antes, o Miguel do Rosário escreveu "A falácia da carga tributária no Brasil".
E o caso dos EUA fornece apenas um exemplo; o mais óbvio, pela grande diferença na arrecadação absoluta, mas não o mais eloquente, se considerados outros fatores, como a população atendida e o território no qual ela se distribui. A comparação da situação brasileira com esses outros exemplos pode ser bem interessante para superarmos esta paralisante falácia da carga tributária como índice de volume de recursos disponíveis para a prestação de serviços públicos.
Contudo, como este texto já está bastante longo, os outros dados e comparações foram apresentados nesta outra publicação: A carga tributária e o discurso fácil da falta de vontade política.
Fica aqui, entretanto, um petisco.
Tendo em vista uma dupla coincidência (de carga tributária e de tamanho do PIB), o caso do Reino Unido fornece um exemplo interessante. Isso porque, considerada apenas a arrecadação de tributos, os gestores dos dois países dispõem de montantes de recursos equivalentes para prestarem seus serviços - o que, não há como não reconhecer, contrariaria tudo que foi dito acima. Afinal, com os mesmo U$ 800 bilhões que o Brasil arrecada, o Reino Unido consegue prestar serviços muito melhores.
Mas essa análise apresada não atenta para (pelo menos) duas (das muitas) diferenças entre os dois países, que representam uma brutal disparidade nos desafios apresentados aos dois Estados. A população do Brasil é o triplo da que tem o Reino Unido, cujo território, além disso, é mais de 30 vezes menor que o nosso. Ou seja, com uma mesma arrecadação, o Estado brasileiro deve prestar serviços para o triplo de pessoas, espalhadas por um território 30 vezes maior [7].
A situação resultante é mais ou menos esta:
E a pergunta martela, será que "os recursos existem, mas somos incompetentes para transformá-los em serviços decentes"?
PS: este texto provavelmente só existe porque, antes, o Miguel do Rosário escreveu "A falácia da carga tributária no Brasil".
4 comentários:
Por isso os "serviços públicos" tem que acabar junto com os impostos.
Isto, Thiago! Vamos virar a Somália...
Internet é uma coisa incrível. Principalmente quando nos aventuramos pelo universo dos comentários. Não importa o quão lúcido e inteligente é um texto, existe sempre alguém meio tapado para escrever algo extremamente absurdo e ignorante nos comentários.
Parabéns pelo texto.
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