sábado, 21 de novembro de 2009

Terra Magazine: a imprensa "não percebe" que nosso modelo democrático esta evoluindo, escreve Francisco Viana

Francisco Viana, para o Terra Magazine:


Francisco Viana


"Nós jornalistas não fazemos a distinção entre notícia boa e notícia ruim. A notícia que é ruim para alguns é boa para outros. O que importa para nós é a notícia. Má notícia existe para vocês".

O autor dessas palavras falou numa oficina de trabalho que realizei na semana passada. Foi uma intervenção rápida. "Vocês" eram os participantes do evento. Será que é assim? E o velho ditado Boa notícia não é notícia onde fica? A notícia negativa é notícia negativa. É negativa para quem é o sujeito da notícia, também para quem a lê, quem por ela é atingido. Por exemplo, o caso do recente apagão de energia. Foi negativa para o governo, foi negativa para quem foi vitima do episódio. Teriam os jornalistas corrido em busca de informações, como correram, se a capacidade de oferta de energia tivesse duplicado no país?

Se a notícia fosse apenas notícia, a imprensa seria neutra. E estaria acima do bem e do mal. Não carregaria nas tintas, por exemplo, sobre as criticas a um governo de esquerda, nem elogiaria um governo de direita ou ao centro. Não é assim, nunca foi assim. E nunca será assim. A política não é neutra, a sociedade não é neutra. Por que a imprensa seria neutra? A idéia de que a notícia é absoluta, é uma realidade em si, brota e floresce do velho modelo liberal de fazer jornalismo.

E esse modelo está em crise. De um lado, porque derivou fortemente para o sensacional. A notícia virou espetáculo. Onde devia predominar o interesse público, predomina o interesse de causar impacto. Muitas vezes o título diz uma coisa, a notícia diz outra. Fontes que fazem denúncias se escondem por trás do anonimato. As questões são formuladas na forma de "pegadinhas" para enredar o entrevistado.

Os dois lados não são ouvidos. Assim, é que a notícia transforma-se em uma mercadoria como outra qualquer, produzida em série, sem grande visão critica, sem grande cuidado com a realidade factual ou a análise baseada nos fatos. Na guerra pela agilidade, a precisão é a primeira vitima. E vitimada a precisão, os fatos caem para plano secundário. Se tornam personagens de ficção.

De outro lado, o modelo atual vê a realidade em preto e branco. Basta olhar os colunistas dos principais jornais do País. A quase totalidade vê a realidade pela ótica liberal ou conservadora. Não há um único colunista - pelo menos eu não conheço - que veja a realidade com um olhar à esquerda, um olhar de negação da realidade atual. A sociedade é cada vez mais múltipla, cada vez mais multicultural, cada vez mais propensa a ver o mundo como um caleidoscópio político, mas a imprensa teima em ver o mundo numa única moldura.


Varia as cores, os formados, mas a essência da moldura é a mesma. O tema do meio ambiente, por exemplo, é focado sempre pelo ângulo de que ser responsável ambientalmente dá lucro. Não há uma única voz a dizer que é preciso mudar o sistema produtivo. O planeta não suporta a expansão desenfreada do consumo. Todos os temas, em suas grandes linhas, é tratado nessa moldura: consumo-lucro. O discurso é repetitivo, a sociedade percebe, se distancia.


No noticiário, a fórmula se repete. Tenta-se explorar sempre a moldura do sensacional, da concorrência entre os veículos para ver qual notícia o espetaculoso com mais detalhes, por mais tempo. Cessado o espetáculo, cessa o interesse. Procura-se adaptar uma teoria de fazer jornal à realidade, não acompanhar a realidade e entender os novos fenômenos que estão à flor da terra ou que ainda não são totalmente visíveis ou apenas se manifestam como tendências.

Em todos os períodos de abertura democrática, o Brasil pendeu à esquerda. É assim desde a República, mas a imprensa permanece conservadora. Não percebe, por exemplo, que hoje há uma intensa briga pelo espaço público de modo a colocá-lo a serviço de interesses privados ou de interesses públicos. Fica perdida no dia a dia, na visão economicista e ou no discurso de fontes oficiais - não me refiro a governos, mas a fontes que não criticam nada e apenas repetem surradas visões de mundo - e não captam o novo. Por exemplo, o caso de Honduras.


O coro ecoou em uníssono: quem decidiu a questão foram os Estados Unidos. Não só nada foi decidido, como os EUA não decidiram nada. Se houver alguma decisão, a paternidade é brasileira. Hugo Chávez, então, é o vilão de sempre. Não há o mínimo cuidado de entendê-lo a partir de uma visão da realidade da Venezuela - um país pobre e com elites muito radicalizadas. Outro vilão de sempre: o MST.


Sem o MST a reforma agrária demoraria mais uns cem anos. Não há dúvida. Na realidade, a imprensa esta se revelando um ator que chega atrasado ao cenário da história. Não se dá conta que estamos evoluindo de uma democracia formal-representativa (dominada pelo liberalismo e o neoliberalismo) para uma democracia participativa, de essência republicada. É um processo, evidentemente, mas este se encontra em movimento. É irreversível.


Curioso é que os jornalistas (refiro-me a um grande número, não a totalidade) não percebem esse fenômeno. Ficam atrelados ao velho modelo de concorrência, de quem dá a notícia primeiro, a crença de que as notícias são neutras, independentemente de serem boas ou más. É desse modo que contribuem para a falência do modelo. Esquecem-se do culto aos fatos. Ou, na análise concreta da realidade - em sua amplitude fatual e histórica - a partir dos fatos. Veja que a chamada grande imprensa se encontra diante de uma questão esfingética, proposta pela realidade: decifre-me ou lhe devoro.


A visão de que a imprensa forma um corpo que fiscaliza o poder, sem ser fiscalizada, que julga o que é e o que não é notícia, que faz a mediação entre o poder e a sociedade, perdeu substância. A imprensa não é mais a senhora da razão. É parte de uma sociedade interdependente. Precisa estar preparada para entendê-la, precisa retornar aos velhos cânones da verdade factual, mas, igualmente, incorporar as múltiplas formas de ser da sociedade.

Ou, então, declarar qual é a sua visão de mundo, deixar claro nos seus valores e missão a sua profissão de fé. Não camuflá-la sob o manto do ideal democrático. O que é esse ideal? A democracia de massas? A democracia do mercado? A democracia apenas para as elites? Uma democracia que favoreça a um processo civilizatório e assegure a todos, independente de ideologia, a mesma igualdade nos espaços públicos? A democracia, vale lembrar, é o antigo ideal grego de igualdade, só que sem escravos. É na igualdade que surgem as diferenças.


A novidade, em relação à história brasileira, é que este debate está no cotidiano, no âmbito da política. Não mais, como no passado, no âmbito da força e da violência. O que está em jogo, portanto, é uma questão de conquista de legitimidade. Esse é o pano de fundo que propõe esse esfinge implacável chamada realidade objetiva, realidade concreta. Ou, democracia participativa em lugar de uma democracia representativa fossilizada. Voltarei ao tema nas próximas colunas.

Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br)

Fale com Francisco Viana: francisco_viana@terra.com.br

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