Segue o artigo publicado no Valor de hoje pela sempre essencial Maria Inês Nassif e copiado de outra fonte.
Por Maria Inês Nassif, no jornal Valor Econômico
Ao final de sete anos de governo e à véspera de uma eleição em que a sua simples presença de um lado da disputa pode definir a sua sucessão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está dando um nó na cabeça da oposição. Não só pela sua popularidade, mas pela forma como conseguiu usar essa popularidade para mudar completamente uma agenda política e econômica à qual, no primeiro mandato, parecia amarrado.
À direita e à esquerda, essa mudança de agenda está sendo colocada como autocrática. Todavia, como definir historicamente uma mudança de agenda política e econômica num regime democrático sem a suposição de que existe apoio popular a ela? O apoio é a um presidente ou a um outro projeto de poder? Como desvincular o presidente Lula do seu partido político, o PT, quando a história política de ambos é a mesma (e isso é um fato mesmo se constatando que, depois de quase dois mandatos como presidente num regime presidencialista, Lula tornou-se maior que o PT)? Se projetos políticos não se sucederem no poder, em alternância, o que se pode querer de uma democracia? É personalismo ou projeto político diferenciado uma inversão completa de agenda em relação aos governos anteriores?
A definição – ou acusação – imputada a Lula pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo recente publicada em dois jornais paulistas (”Folha de S. Paulo” e “Estado de S. Paulo”), e reiterada em entrevista ao colunista Vinicius Torres Freire, ontem, na “Folha”, de exercer uma “Presidência imperial”, ou ser o artífice de um estado de “apatia com autoritarismo popular”, não parece plausível. Não dá para “acusar” alguém de ser popular. FHC também o foi no seu primeiro mandato e venceu as eleições para a reeleição no primeiro turno, em 1998. Não dá para “acusar” alguém por estar no poder, se essa pessoa foi eleita. FHC também foi, duas vezes. E, como Lula, também tentou, embora não com tanto empenho, fazer o seu sucessor.
Como Lula, Fernando Henrique Cardoso foi vitorioso como principal articulador de uma nova agenda política e econômica – no seu caso, o discurso vitorioso foi o de rompimento com a agenda nacional-populista de Vargas que ainda estava entranhada na sociedade. Como Lula, FHC teve que fazer valer o seu projeto num regime presidencialista com forte dispersão partidária. Ninguém o acusou de autoritário por isso. E não existe nenhuma objetividade numa acusação de autoritarismo se a pessoa que está sendo acusada se submeteu às urnas e mantém-se estritamente no jogo político institucional (ainda anteontem, Michael Bloomberg se elegeu, pela terceira vez, prefeito de Nova York).
A grande arte do Brasil democrático foi a de conseguir criar, mesmo após longo período de ditadura militar, uma cultura democrática. Foi arte, não foi sorte. Um único presidente, Fernando Collor, tinha um perfil que tendia ao autoritarismo mas, salvo a edição do Plano Collor numa conjuntura de hiperinflação no primeiro dia de seu governo – que enxugou drasticamente a liquidez com o confisco de poupança -, o autoritarismo não conseguiu passar de um discurso forte com cores nazistas. Collor mais ladrou do que mordeu: aceitou sem reações um processo de impeachment que acabou se tornando um símbolo da democracia brasileira. O presidente Itamar Franco, eleito como seu vice, governou por dois anos, tinha tradições democráticas e não as negou no poder.
Antes deles, o primeiro presidente civil depois do golpe de 1964 e último a se eleger pela via indireta, José Sarney, teve muitos defeitos, mas seu governo foi fundamental para a consolidação da democracia. Foi nesse período que funcionou a Assembleia Nacional Constituinte. Não consta que Sarney, mesmo com o pecado original de ter antes vivido à sombra do regime autoritário, tenha cometido atentados contra a então tenra democracia. Como vice do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, Sarney ascendeu ao poder pela morte de um dos grandes articuladores da transição para a democracia. Estava comprometido com as forças democráticas, já majoritárias na sociedade, e não conseguiria sobreviver no poder sem o apoio delas.
Os governos do presidente Fernando Henrique Cardoso tiveram grande conteúdo democrático. FHC vinha da oposição institucional ao regime militar, o MDB, ingressou no PMDB e ascendeu pelo PSDB, partido surgido de um racha do PMDB. FHC, assim como Lula, esteve presente nos grandes movimentos pela democracia no pré-85. No governo, foi um hábil, e democrata, articulador de forças econômicas que emergiam num Brasil que se abria para o capitalismo financeiro internacional. Não houve autoritarismo nessa mudança de agenda: ele articulou forças que se moviam no cenário democrático a partir de mandato ao qual foi investido pelo voto popular. FHC foi bastante popular no final do primeiro governo, quando o Plano Real produziu um ganho de distribuição de renda incomum num país de renda concentrada como o Brasil. Perdeu esse legado no segundo mandato, quando a renda voltou a se concentrar.
O presidente Lula não foi nem mais, nem menos democrático que os outros civis. Foi igualmente democrata. Com mandato popular, articulou forças que se moviam no território da democracia para mudar a agenda política e econômica. A interpretação de que é a figura central de um “autoritarismo popular” não leva em conta a origem do mandato de Lula – o voto, como os dois mandatos de FHC -, mas o fato de que o atual presidente articula outras esferas da sociedade que foram incorporadas ao projeto de poder tucano apenas durante o Plano Real, e dele foram apartadas por sucessivas crises e um modelo de acumulação que se tornou excludente, passado o efeito desconcentrador do êxito anti-inflacionário.
A designação de “autoritarismo” não leva em conta o voto; a “acusação” de popular não faz justiça a quem vota.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
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