terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O vira-lata, a cranberry e a jabuticaba.

A publicação ficou longa, mas eu queria manter os textos abaixo bem juntinhos. São três artigos, publicados, nesta ordem, pela Carta Capital, pelo Valor Econômico e pela Revista de História da Biblioteca Nacional.

Flor da jabuticabeira
Flor da Jabuticabeira
Os dois primeiros artigos tratam de uma mesma questão, por óticas distintas. Eles falam desta mania brasileira, a arraigada noção de que tudo feito, decidido, inventado ou imaginado por aqui é pior, quando comparado ao que se passa alhures, especialmente em países desenvolvidos (ou asiáticos em desenvolvimento). É o tal do complexo de vira-latas.


Dos arquivos do blog:
O Brasil é a Nova América?


O último artigo trata de outro assunto: a relevância do conceito de inimigo na formação da identidade norte-americana. Pra isso, especifica rapidamente o processo de colonização e independência dos Estados Unidos. Em seguida, talvez para reforçar aspectos relevantes para a tese, compara aquele processo de emancipação com o Brasil, bastante distintos.

Essa comparação, na verdade, em diversos sentidos, poderia mesmo servir de argumento (bem determinista) para o reforço do complexo. Algo do tipo: "Tá vendo, até nossa independência foi meia boca..."

Por outro lado, a comparação suscita (só em mim?) uma outra questão: e se aqueles colonos instalados nas longínquas terras inglesas na América se vissem como vira-latas, teriam eles promovido as mudanças que promoveram? Se aquele pessoal impertinente, esquecido naquelas colônias abandonadas, incorporasse a ideia que deles tinham os ingleses, teriam sido os americanos capazes de inventar todo um novo sistema?

Talvez os EUA só sejam o que são hoje (se bom ou ruim, é outra questão), entre outros fatores, porque os tais "pais fundadores" acreditaram que sim, apesar de perdidos no fim do mundo, eles podiam inventar algo novo, não necessariamente pior que o existente na metrópole.  Porque naqueles debates todos que geraram o modelo norte-americano ninguém lançou com sucesso a frase, tão paralisante quanto viralática: "se só existe nas 13 colônias e não é Cranberry, não pode ser bom".


Leia também:
Holanda manda delegação conhecer experiência do Conselhão
Keneth Rapoza, na Forbes: as descobertas da Petrobras no pré-sal são, para o Brasil, o que pousar na lua foi para os EUA
Portal Exame: Embrapa se prepara para atender a demanda externa por seus serviços e sua tecnologia.
Newsweek: com suas conquistas desde 2003, o Brasil surge como modelo na luta contra a pobreza.



******


Roberto Amaral


“A ponte Rio-Niterói é, portanto, uma linda obra turística, cuja prioridade não se justifica em um país de escassos recursos que se defronta com necessidades berrantes que aí estão nesta mesma região do País, clamando pela ação do Governo”.
Eugênio Gudin, O Globo, 2/3/1974

Foi Nelson Rodrigues, em crônica às vésperas da Copa do Mundo de 1958 (Manchete esportiva, 31/5/1958), quando a seleção brasileira partia desacreditada para a disputa na Suécia, quem grafou o conceito de “complexo de vira-latas”, resumo de um colonizado e colonizador sentimento de inferioridade em face do estrangeiro e do que vem de fora, seres e coisas, ideias e fatos.

Impecável a definição, cujas raízes nos levam à empresa colonial e ao escravismo, à dependência cultural às diversas Cortes que sobre nós reinaram e ainda reinam.

Peca, porém, o teatrólogo genial e reacionário militante ao atribuir tal “complexo” a um fenômeno nacional, como se fosse ele um sentimento de nosso povo, de nossa gente, pois nada é mais povo brasileiro do que o torcedor de futebol.

Esse sentimento existe, mas regado pela classe dominante brasileira, desde a Colônia, que sempre viveu de costas para o país e com os sonhos, as vistas e as aspirações voltadas para a Europa. Terra de “índios desafeitos ao trabalho”, de “negros manimolentes e banzos” e “europeus de segunda classe”, nosso destino, traçado pelos deuses, era a de eternos coadjuvantes. História própria, industrialização, destino de potência… ah, isso jamais!

Nem no futebol, pois havíamos perdido as copas de 1950 e 1954 justamente porque éramos (eram nossos jogadores) um povo mestiço.

Pensar grande, pensar na frente, projetar-se no mundo e na História, isso é coisa de visionários ou políticos “populistas”.

Tal cantochão reacionário foi construído pelos pensadores dos interesses dominantes (desde os que no Império advogavam o “embranquecimento da raça” e por isso, só por isso, chegaram a admitir a abolição da escravatura), e ainda hoje é o refrão da direita impressa.


Para essa gente, o destino de nosso país era o de exportador de café e importador de manufaturas (“porque produzir aqui se podemos importar o produto estrangeiro, melhor e mais barato?”), e agora é o de exportador de soja e minério in natura. Amanhã, que os fados nos protejam, o destino que nos devotam é de exportadores de óleo bruto, como o Iraque, o Irã, a Venezuela, a Arábia Saudita…

O único engenho concedido ao nosso povo é o carnaval, comercializado pela tevê monopolizada. Mas dizem ao nosso povo os jornalões que não temos capacidade de construir meia dúzia de estádios.

Mesmo o futebol entrou em questionamento, depois que o Santos caiu de quatro nos gramados japoneses. A grande imprensa agora prescreve que o futebol brasileiro precisa reaprender com o catalão, repleto de atletas estrangeiros, inclusive, brasileiros…

Um bom representante desse pensamento conservador – que no Império ceifou pioneiros como Mauá – é Eugênio Gudin, criador (ao lado de Octavio Gouvêa de Bulhões) do ensino da economia em nosso país, e fundador do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas. Monetarista e anti-desenvolvimentista, anti-varguista e anti-juscelinista, iluminador do moderno neoliberalismo brasileiro, combatia a intervenção do Estado na economia, o apoio (com incentivos ou o que fosse) à industrialização, e defendia com unhas e dentes, desconsiderando a realidade objetiva, o equilíbrio financeiro e a austeridade fiscal.

Gudin, como a maioria dos economistas, gostava de falar em “custo de oportunidade”, que procura medir o que poderia ter sido feito em saúde, educação e mais isso e mais aquilo, com os gastos de determinada obra ou melhoramento. Por exemplo, quanto poderíamos ter investido em saúde se não investíssemos na transposição do São Francisco, em que pese ao preço de deixar à míngua milhões de brasileiros do semi-árido nordestino…

Por isso, Gudin, como a classe dominante e a direita impressa, foram contra Brasília e mesmo contra a ponte Rio-Niterói, e são, agora, contra o trem-bala que ligará Campinas-São Paulo ao Rio de Janeiro.

Ainda na ditadura, um falecido jornalão carioca insurgiu-se contra as obras do metrô em nossa cidade, sob o tacanho argumento de “que ainda não haviam sido esgotadas as possibilidades do trânsito de superfície”.
Chateaubriand, nosso Cidadão Kane, mobilizou sua cadeia de jornais e rádios para combater os investimentos da União na triticultura gaúcha “porque era muito mais barato importar trigo dos EUA’”, que então renovavam seus estoques de guerra.

Agora mesmo há os que julgam desperdício os investimentos em hidroelétricas e em Angra III.

Ora, em país que de tudo carece, tudo é urgente e igualmente tudo é adiável. Mais importante do que o “custo de oportunidade” é a oportunidade do investimento, ainda que signifique o atraso de obras e serviços “inadiáveis”.

Assim foram os investimentos dos anos 50 na Petrobras (que Gudin e outros consideravam um desperdício, até por que “o Brasil não possuía petróleo”) e a seguir os investimentos da estatal em pesquisa, de que a prospecção em águas profundas é apenas um dos frutos. Aos míopes daquele então, pergunto: que seria o Brasil de hoje dependente da importação de petróleo? Que será o Brasil de amanhã sem energia elétrica?

Aí então é que não podemos pensar em saúde e educação universais. Mas, para os áulicos do conservadorismo, tudo o que significa investimento com vistas ao futuro deve ser adiado, como supérfluo. Daí o desmantelamento tecnológico de nossas forças armadas, daí o atraso da indústria nuclear, daí o atraso na indústria espacial, daí o atraso na produção de fármacos, na recuperação das ferrovias.

Paremos aqui, pois o rol é interminável.

O Brasil de hoje mostra a relevância dos “injustificáveis investimentos” na construção de Brasília (incorporando à economia mais da metade do território nacional) e da ponte Rio-Niterói, a qual, aliás, já dá sinais de saturação.

Todo mundo pode construir seu trem-bala. Podem o Japão, a China, a Itália, a França, a Espanha… mas o Brasil, não, pois aqui “há outras necessidades exigindo recursos”. E na China e na Espanha por acaso já não há mais nada pedindo investimentos? Seus críticos de boa e de má-fé reduzem o projeto à ligação entre as duas maiores metrópoles do país, ou seja, a um simples sistema de transporte, o que, convenhamos, já o justificaria.

Mas aos esquecidos lembremos o processo de urbanização que essa nova via proporcionará, criando em torno de seu trajeto e de suas estações novas condições de vida e moradia, desafogando os grandes centros, atraindo serviços e indústrias, ou seja, promovendo o desenvolvimento que ensejará investimentos em saúde, educação, saneamento etc.


******


O Brasil já deu certo - apesar dos céticos


Alberto Carlos Almeida


Grande parte da mídia brasileira se especializou em falar mal do Brasil. Graças a isso, a percepção que a sociedade tem de si mesma, em diversos aspectos, é inteiramente equivocada. Vende-se algo que não existe: a visão de que somos piores em quase tudo, quando comparados com a maioria dos países desenvolvidos. Nem mesmo as boas notícias são recebidas de maneira positiva. Por exemplo, a recente informação de que ultrapassamos o Reino Unido quanto ao PIB foi divulgada cheia de ressalvas, afirmando-se que o PIB per capita é um indicador mais relevante e coisas do gênero.

A covardia com o Brasil atinge o ápice quando se tenta comparar nosso sistema político com o dos outros países. Afirma-se que o presidencialismo é pior do que o parlamentarismo, mas não dizem que os países parlamentaristas têm gastos públicos sistematicamente maiores do que os presidencialistas e que é justamente por isso que a Europa se encontra mergulhada na pior crise econômica de sua história recente. Diz-se que o sistema eleitoral distrital é melhor do que o proporcional com lista aberta, mas não dizem que um dos países que melhor escapou da crise mundial é a Suécia, que adota o mesmo sistema eleitoral que o nosso tão criticado Brasil. Como sempre, a lista de críticas ao Brasil é muito longa. É difícil imaginar como um país tão ruim, com tantas coisas negativas, possa ter chegado aonde chegou. Opa, para os críticos ele não chegou a lugar algum, continua lá atrás, sendo um dos países mais problemáticos do mundo.

A crítica permanente ao Brasil está fundamentada em excesso de provincianismo: como não se conhece o que acontece em outros lugares, assume-se que aquilo que conhecemos de muito perto, em detalhes, é muito ruim. A greve dos policiais da Bahia e a desordem e criminalidade resultantes é um prato cheio para a frase típica dos que sofrem de complexo de inferioridade: "Isso só acontece no Brasil". É possível ver o outro lado da moeda, o lado positivo. A greve dos policiais baianos será resolvida de uma forma inteiramente diferente de greves congêneres que ocorrem nos Estados Unidos. Ao contrário de nosso vizinho mais rico, aqui não será dado um aumento salarial que comprometa a situação de nossas finanças públicas.

É isso mesmo. Para aqueles que não sabem, vários Estados e municípios americanos estão quebrados porque concederam aumentos salariais a perder de vista para policiais e bombeiros. Esse é o caso, tão bem relatado por Michael Lewis em seu livro "Bumerangue", recentemente publicado no Brasil, da Califórnia e dos municípios de San Jose e Vallejo. Aqueles que idolatram o federalismo americano deveriam saber que justamente por isso lá não há nada que se assemelhe a nossa Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Governadores e prefeitos estão livres para exercer sua prerrogativa de gastar muito, endividar o setor público ao ponto de comprometer seu funcionamento para as futuras gerações. Não serve aqui o argumento em abstrato, o princípio teórico, de que descentralizar é necessariamente melhor do que centralizar.

Os policiais da Bahia e de outros Estados estão limitados pela nossa centralização, que se traduz na possibilidade de ter algo como a LRF. Mais do que isso, a simples discussão ora em curso sobre a PEC 300, um sinal evidente de nossa centralização, mostra que jamais nossos Estados ou municípios ficarão na situação, como é o caso de Vallejo, de ter somente um funcionário público, aquele que tem como função pagar os salários, aposentadorias e pensões de policiais e bombeiros. Isso mesmo, em Vallejo, os sinais de trânsito estão todos piscando permanentemente em amarelo. O município, falido, não tem recursos para sustentar uma burocracia que faça valer as leis de trânsito. Isso jamais ocorreu ou ocorrerá no Brasil.

Na Grécia, não há cartões de crédito na grande maioria dos estabelecimentos comerciais. A razão é simples: o pagamento em dinheiro vivo está a serviço da mais fácil e completa sonegação de impostos. Não adianta dizer que os gregos são uma piada e isso e aquilo. Sempre foi assim, desde o momento em que a Alemanha aceitou a entrada da Grécia no acordo que estabeleceu o euro. Os gregos vão muito além de não utilizar cartões de crédito. Em ano eleitoral, o governo relaxa o controle fiscal, faz vista grossa para o não pagamento de impostos. É muito interessante que o Brasil seja tão ruim, mas que um país europeu utilize o (não) pagamento de impostos como moeda de troca eleitoral. Cá entre nós, comprar votos em comunidades pobres é muito mais redistributivo. Nosso sistema de controle fiscal pode não ser germânico, mas certamente temos uma burocracia muito mais avançada do que muitos países europeus. Os críticos contumazes do Brasil não sabem disso, são provincianos demais para imaginar que algum país supostamente desenvolvido possa não controlar o pagamento de impostos, como se faz na nação de Macunaíma.

Aliás, nada mais distante do espírito germânico do que Macunaíma, nosso herói sem caráter. Ele é um retrato da nossa incredulidade. O brasileiro jamais acredita no que se diz. Essa credulidade alemã não faz parte da nossa cultura. Foi graças a isso que os alemães sempre acharam que a Grécia estava cumprido as metas de gastos definidas pelo tratado de Maastricht. Um burocrata ou um ministro da Fazenda brasileiro jamais confiaria na Grécia quanto a isso.

O livro "Bumerangue" é um excelente antídoto para o excesso de pessimismo quanto ao Brasil. Michael Lewis mostra que nos Estados Unidos, Grécia, Islândia, Irlanda e Alemanha aconteceram e acontecem coisas terríveis, que jamais atingiram e provavelmente nunca farão parte de nossa realidade. É claro que temos coisas ruins e abomináveis, mas isso está longe de ser o cenário catastrófico pintado pelos críticos. Todo país e toda sociedade têm problemas, mas também não somos piores do que os outros em tudo ou quase tudo.

Os alemães de Lewis são crédulos ao ponto de serem os únicos que, já com a crise no horizonte, continuavam comprando os papéis do "subprime" em Wall Street. Aliás, quando um "trader" americano tinha dificuldade para vender tais papéis, recebia invariavelmente a seguinte recomendação: "Venda para aqueles otários de Dusseldorf, que eles compram de tudo". Não creio que algum dia será possível trocar otários de Dusseldorf por otários de São Paulo ou do Rio de Janeiro, e muito menos de Brasília.

Os brasileiros acreditam em coisas mágicas como o boto da Amazônia ou o nêgo d'água em Minas Gerais. Ambos cumprem o mesmo papel de justificar, em uma sociedade conservadora, a gravidez de mulheres solteiras ou a traição das casadas. Isso causa muito menos prejuízo aos cofres públicos do que os duendes nos quais acreditam. Isso mesmo, na Islândia se acredita em duendes e quando uma empresa como a Alcoa foi se instalar por lá teve que aguardar por seis meses, até que fosse concluído um estudo que verificaria que em determinada área não havia duendes. É a mesma Islândia que transformou dezenas de pescadores em banqueiros. Isso mesmo, os banqueiros islandeses tinham sido pescadores durante toda sua vida profissional.

Mais do que isso, David Oddsson, que foi primeiro-ministro e presidente do Banco Central islandês, nunca teve experiência alguma com bancos e era poeta de formação. Talvez por isso os bancos alemães tenham colocado US$ 21 bilhões na Islândia, a Holanda tenha apostado US$ 305 milhões, o Reino Unido US$ 30 bilhões e a Universidade de Oxford tenha perdido US$ 50 milhões. No Brasil, é impensável que alguém que não tenha familiaridade com o mercado financeiro assuma a presidência do Banco Central. Mesmo assim, há aqueles que insistem em criticar tudo ou quase tudo.

Trata-se de uma questão de ponto de vista, de como olhamos o Brasil. O exemplo da centralização é emblemático. Não há nada necessariamente melhor em ser tão descentralizados como são os Estados Unidos. Uma postura cética indica que o que melhor e pior, o benéfico e maléfico, dependerão das consequências. A comparação entre os gastos com funcionários públicos estaduais e federais no Brasil e nos Estados Unidos mostra que a centralização política e administrativa tem sido mais efetiva para conter seu descalabro. Indo além, ser um pouco macunaímico quando se trata de comprar papéis do "subprime" teria sido bom para os germânicos. Nada disso se escolhe: são coisas que as nações são ou não são. Ultimamente, temos sido os grandes beneficiários de ser como somos.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo".
E-mail: Alberto.almeida@institutoanalise.com
www.twitter.com/albertocalmeida


*****


Leandro Karnal


Para se viabilizar como nação, americanos elegem adversários – indígenas, comunistas e terroristas – desde a Independência

Tendo atrás a estátua do presidente Lincoln e à frente o obelisco que homenageia George Washington, em 28 de agosto de 1963 o pastor Martin Luther King Jr. fez um discurso histórico: “Eu tenho um sonho”.  Combatendo o racismo da sociedade norte-americana, o futuro Prêmio Nobel da Paz usou uma imagem interessante para definir o episódio da Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776: uma espécie de cheque a ser descontado pelas gerações futuras do país.

O líder dos direitos civis explicou que o cheque, levado ao banco por mãos negras, voltou com a marca “fundos insuficientes”.  O discurso foi um protesto contra este estelionato, pois os afrodescendentes ainda lutavam por seu 4 de julho, 187 anos depois da ruptura com a Inglaterra. Em defesa do voto feminino, mulheres recorreram a argumentos semelhantes, assim como os conservadores do século XXI do Tea Party – grupo político republicano conservador – invocam o espírito da Independência ao proclamar suas ideias e projetos.

Esse sentimento vem de longe. Fundadas no século XVII, as 13 colônias inglesas da América do Norte foram abandonadas à própria sorte, pois a Inglaterra estava ocupadíssima com crises internas, especialmente a sua guerra civil, quando o Parlamento liderou a luta contra o absolutismo dos reis Stuart. No século XVIII, tudo mudara. Estável e rica, a Inglaterra dava os primeiros passos da industrialização.  As colônias teriam um novo papel. [Sim, abusado, eu vou fazer um aparte: entendeu? Não foi a qualidade dos colonizadores - "magníficos ingleses no lugar de portugueses idiotas e bandidos" - que fez a diferença. Foi a disparidade entre os momentos políticos vividos pelas metrópoles que determinou um sistema colonial diferente entre a América do Norte e a nossa América Latina + México) 

John Hancock chegou a exagerar o tamanho da assinatura na Declaração para o rei George III ler com clareza, um gesto ousado de humor

Foi a partir de 1764, quando o Parlamento de Londres endureceu e reafirmou seu papel de metrópole no controle das colônias, que as lideranças do Novo Mundo iniciaram os boicotes e protestos violentos contra a ordem reinstaurada. As leis inglesas passaram a restringir o comércio e a liberdade das colônias americanas, como a lei do açúcar e a do chá. As hostilidades evoluíram para choques armados e, em 4 de julho de 1776, para espanto do mundo, congressistas reunidos na Filadélfia proclamaram a Independência, fato até então inusitado no Novo Mundo. O princípio revolucionário de que “todos os homens foram criados livres e iguais” tornara-se concreto pela primeira vez na História.

Quando homens brancos e ricos puseram suas assinaturas na declaração formal de independência, estavam rompendo o modelo político colônia-metrópole. John Hancock (1737–1793) chegou a exagerar o tamanho da assinatura para o rei George III ler com clareza, um gesto ousado de humor, porque todos conheciam a força do império. A posteridade, no entanto, rendeu homenagem à ousadia e Hancock virou sinônimo de assinatura.

Para nós, brasileiros, a comparação é interessante [Ver RHBN nº 66]. O gesto simbólico da nossa Independência de 1822 foi pintado em “O grito do Ipiranga” somente em 1888, por Pedro Américo. No quadro, foi cristalizado o imaginário bem digerido em textos didáticos e em filmes: D. Pedro grita, de forma romântica e passional: “Independência ou Morte!” Já a cena da Filadélfia, também representada no século XIX por John Trumbull (1756-1843), recorre à tinta racional: homens discutem e definem os motivos pelos quais são levados ao ato da ruptura. Dois momentos e dois países diferentes.

O príncipe Pedro estabeleceu mais um slogan do que um programa. Os EUA nasceram a partir de uma declaração pormenorizada, com princípios iluministas de liberdade para todos, igualdade, e considerando a felicidade como um direito universal. O que ocorreu nos séculos seguintes foi, sistematicamente, a busca desta utopia. Uma espécie de guia para deixar uma construção teórica e formal de liberdade e caminhar na direção de conquistas concretas, como a do voto feminino ou dos direitos dos negros. Querendo ou não, fazendeiros, escravocratas, comerciantes e profissionais liberais daquele salão na Filadélfia estabeleceram a base de uma agenda de 200 anos de protestos.

Diferentemente do processo americano, a Independência do Brasil foi apropriada pelo Estado e, apesar da participação popular em alguns episódios, como as lutas da Bahia [Ver RHBN nº 48], sempre foi considerada herança governamental e responsabilidade oficial. O processo de ruptura entre as 13 colônias e a Coroa britânica foi incorporado mais amplamente. O 7 de setembro (lembrança da independência brasileira) e o 4 de julho (norte-americana) sempre seriam muito diferentes: oficial o primeiro e popular o segundo.

Na própria Declaração de Independência, os colonos reconhecem que seria melhor deixar tudo como estava

Da memória da independência dos EUA retiram-se metáforas, exemplos e propostas de ação que servem desde recusa conservadora da presença do Estado na economia, como prega o Tea Party, até a proposta de maior inclusão do negro na sociedade, caso do “Eu tenho um sonho”.  Nos dois casos, a disputa pela memória existe porque o processo é muito amplo e permite adaptações e usos diversos. É possível exigir, como fez Martin Luther King, que o Estado promova uma política efetiva contra a segregação racial em nome dos “pais fundadores”. Também é igualmente possível exigir que o Estado não lance novos impostos, respeite a iniciativa privada e o direito do indivíduo de prosperar. Desta maneira, 1776 é um signo aberto, ou seja, pode ser associado a diversos contextos. Cada momento ou grupo conseguiu, quase livremente, constituir seu ideal do que tenha sido a “essência” do 4 de julho.

Como toda unidade nacional, a dos EUA foi fruto de elaboração variada e histórica. Para formar uma nação com um mínimo de coesão, foi sempre necessário combater um perigo externo: os ingleses do século XVIII, os índios do XIX, os comunistas do XX ou os atuais “terroristas islâmicos” deste início do XXI. Todos serviram de poderosos catalisadores para viabilizar a nação.

A realidade das 13 colônias era de profunda variedade religiosa, econômica e social. Em 1776, não havia nada próximo de um país. O esforço inicial dos colonos no processo de luta contra o Parlamento inglês foi o de pertencimento. Seus documentos pedem reconhecimento de seus direitos como parte viva e igual do império britânico. Na própria Declaração de Independência, os colonos reconhecem que seria melhor deixar tudo como estava, já que não havia um sentido claro da Coroa britânica em prejudicá-los.

Feita a Independência, restava o desafio de construir uma nação. Valores como igualdade tinham de ser redefinidos dentro de limites socialmente seguros. Símbolos deveriam ser inventados. Tratava-se de dar forma a uma comunidade surgida a partir de uma guerra.

O país que tinha nascido sem nome teria sua diversidade aumentada enormemente com a imigração. Como constituir uma nação e criar instituições com navios despejando lituanos, italianos, espanhóis e irlandeses todos os dias? Sem resolver a complexa questão, uma das respostas foi a guerra.

Lutar contra o outro forja um dos sentimentos mais intensos de identidade. Permite a um grupo, irredutível na sua alteridade, sentir a continuidade e a força do objetivo comum. O coletivo aumenta a força, justifica a violência e dilui responsabilidades.

A história americana pós-1776 estabeleceu com clareza quem seria o outro, o inimigo, mas nunca conseguiu  definir com nitidez quem seria o americano. Este é o grande desafio até hoje, quando a excepcionalidade americana é cada vez menos reconhecida. Resta o “admirável mundo novo” (brave new world: expressão da peça “A Tempestade”, de Shakespeare), que, por sinal, nasceu de ideias contidas no sonho da Independência dos EUA.

Leandro Karnal é professor de História da América na Universidade de Campinas, autor de Estados Unidos: A formação da nação (Ed. Contexto, 2005) e coautor de História dos Estados Unidos (Contexto, 2007).

Saiba Mais:
BAILYN, Bernard. As origens ideológicas da Revolução América. Bauru: Edusc, 2003.
DRIVER, Stephanie Schwartz. A Declaração de Independência dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
MCCULLOUGH, David. 1776: A história dos homens que lutaram pela independência. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
FILMES
Revolução”, de Hugh Hudson, 1985.
O Patriota”, de Roland Emmerich, 2000.


Tá difícil...