Este texto encerra uma proposta
iniciada nesta outra publicação: A carga tributária, os "tributos de país desenvolvido" e os serviços públicos brasileiros. Inspirados numa ideia apresentada aqui, pelo Miguel do Rosário, eles tentam
enxergar, sob uma nova perspectiva, a tão comentada (e falaciosa) relação entre
a carga tributária e a expectativa de qualidade dos serviços prestados pelos
governos brasileiros [1].
O primeiro texto tentou mostrar
que, como serviços são custeados com recursos financeiros, e não com
percentuais abstratos, as suas quantidade e qualidade não tem relação direta com a carga tributária, mas sim com a efetiva arrecadação dos governos.
Assim, não existiria qualquer lógica em, tendo em vista nossa carga tributária,
avaliar comparativamente a atuação dos governos brasileiros e exigir deles serviços
públicos “de 1º mundo” - se, na verdade, aqui, conta-se com bem menos recursos
que os governos de países desenvolvidos.
Em outras palavras: talvez nossos
serviços sejam de 3º mundo porque a nossa arrecadação, ao contrário do que parece, é de país pobre.
Dos arquivos do blog:
Desde a implantação do Bolsa Família, a Taxa de Natalidade já caiu 25%
Como já indicado no fim do texto anterior, a simples comparação da arrecadação total de cada país, apesar superar parte do problema, também não oferece um critério muito seguro. Diversas variáveis presentes na realidade de cada país impõem desafios específicos, que criam necessidades distintas e influem nos custos dos serviços, complicando a utilização da arrecadação total como critério para a comparação.
Dos arquivos do blog:
Desde a implantação do Bolsa Família, a Taxa de Natalidade já caiu 25%
Como já indicado no fim do texto anterior, a simples comparação da arrecadação total de cada país, apesar superar parte do problema, também não oferece um critério muito seguro. Diversas variáveis presentes na realidade de cada país impõem desafios específicos, que criam necessidades distintas e influem nos custos dos serviços, complicando a utilização da arrecadação total como critério para a comparação.
Entre outros fatores, os países
diferem entre si pelo tamanho do território; pelo tamanho da população; pela
riqueza já acumulada; pela forma de Estado; pelo sistema de governo; pelo
clima; pela morfologia do relevo e pela geologia; pela disponibilidade de
recursos naturais; e, como dito, mais uma infinidade de variáveis. Em maior ou
menor grau, todas elas podem afetar a quantidade de serviços públicos necessários, bem
como o custo de sua execução pelos governos.
Desta forma, uma comparação
razoável entre dois ou mais países, no que concerne à adequação (ou não) entre
o preço pago pela sociedade, por meio
de tributos, e a qualidade dos serviços prestados, não pode deixar de levar em
conta os fatores que os diferenciam.
Isto é: não dá, por exemplo, pra
avaliar comparativamente os serviços públicos prestados por dois Estados (A e B)
com a mesma arrecadação, se A tem o triplo da população de B, espalhada por um
território 34 vezes maior. E são exatamente essas as relações entre as
arrecadações e os tamanhos dos territórios e populações do Brasil (A) e Reino
Unido (B) [2] [3].
Como disse, sei que um enorme
número de variáveis torna a comparação extremamente complexa. Por outro lado, este blogueiro não dispõe do know-how e da estrutura necessários para uma análise mais profunda, que leve
em conta todos esses fatores, além das relações entre eles. E, ainda que os tivesses, um publicação num blog, feita nas horas vagas, obviamente não seria lugar para
isso.
Contudo, desde que feita a ressalva
de sua superficialidade, pode ser bem oportuno colacionar e comparar os dados
referentes à arrecadação de diversos países e sua proporção em relação a duas
variáveis bem acessíveis: a área do território e o tamanho da população. Ainda
que superficial, ela parece indicar claramente o descabimento do mito segundo o
qual o brasileiro pagaria tributos de 1º
mundo em troca de serviços de 3º mundo.
Na verdade, considerados os dois
fatores referidos, os recursos disponíveis para os nossos governos são bem
menores que os arrecadados nos países desenvolvidos.
População
A relação entre o tamanho da
população e o volume de recursos necessários para a prestação de serviços
públicos é, me parece, intuitiva. Mais “clientes” importa na necessidade de
mais profissionais e de uma estrutura maior, além dos demais custos específicos
de cada prestação. Mesmo considerando a economia de escala, colocar serviços de
atenção à saúde à disposição de 10 milhões de pessoas, por exemplo, não pode
ter o mesmo custo de fazê-lo para 200 milhões de pessoas.
Assim, supondo idênticas as
arrecadações totais, é inviável exigir de um país a mesma qualidade dos
serviços prestados em outro, se a população do segundo é 3 ou 4 vezes menor que a
do primeiro. O mesmo volume de recursos, que basta em um deles, com sua
reduzida população, pode não ser suficiente para prestar serviços para a enorme
população do outro.
Aqui, como previsto, a comparação
da arrecadação total torna-se imprestável.
Mas, tomando a arrecadação de
cada país e a sua população, é possível obter um índice um pouco mais útil,
ainda que falho: o da arrecadação por habitante. Dá pra saber, com isso, de
quanto dispõe cada Estado para prestar todos os serviços públicos para cada um de seus habitantes
– e, aí, com um pouco mais de propriedade, avaliar comparativamente se ele faz
bom uso desses recursos.
Da mesma forma, esse mesmo
cálculo permite ter uma ideia do outro lado da mesma moeda: quanto cada
habitante de cada país paga pelos
serviços que recebe – e, com isso, quem sabe, concluir se ele paga caro por serviços ruins.
E o que revela esse índice?
Bem, o mito dos tributos altos para serviços ruins adora comparar os
serviços públicos brasileiros (e nossos hospitais, ruas, estradas, metrôs, escolas, aeroportos etc)
aos geridos pelos gestores públicos noruegueses, suecos e japoneses, por
exemplo. Diz ele, o mito, que nossa carga tributária é equivalente a deles (nos
dois primeiros casos, na verdade, é menor [4]),
mas nossos serviços não são iguais, o que os tornaria caros.
Contudo, enquanto o Brasil
arrecada U$3.875 por habitante, a Noruega arrecada U$23.456 por habitante; a
Suécia, U$19.704; e o Japão, coitadinho, U$ 9.921. Isto é: os governos
noruegueses dispõem de 6 vezes mais recursos por habitante que os seus correlatos
brasileiros para prestarem serviços públicos; e, reverso da moeda, na média, cada cidadão brasileiro paga 1/6 do que o cidadão norueguês paga pelos serviços públicos.
Na outra ponta, a nossa carga
tributária, sempre considerada gigantesca, garante aos governos brasileiros uma
arrecadação per capita semelhante à da Bielorrússia, Romênia e Turquia.
Em verdade, tomados os dados das
70 maiores economias do mundo [5], o Brasil é apenas o 33º colocado em arrecadação
por habitante. Ele fica atrás, por exemplo, além dos países incluídos no
gráfico acima, da Áustria (U$18.562); Suíça (U$13.623); Itália (U$12.285);
Irlanda (U$10.827); Nova Zelândia (U$8.867); e Singapura (U$7.778). Mais
próximos a nós, ficam Argentina (U$5.434); Qatar (U$5.288); Taiwan (U$3.224);
Ucrânia (U$ 2.745); África do Sul (U$ 2.685); e Cazaquistão (U$ 2.694).
E, aí, será que dá mesmo pra dizer que estamos
pagando “preço de 1º mundo por serviços de 3º mundo”?
Território
Ainda que outas questões a
afetem, a proporção direta entre o tamanho da “área de atuação” e um custo maior
na prestação de serviços também não parece difícil de ser aceita, especialmente
se a ocupação, ainda que desigual, estiver disseminada por todo o território.
Um país maior exige estruturas viárias e de transportes em geral mais amplas;
impõe a criação de instituições estatais descentralizadas (justiça,
fiscalização, e administração propriamente dita); requer a instalação de
hospitais (e demais serviços de saúde) e escolas suficientemente próximas das diversas
concentrações populacionais; etc.
Abstraídos outros fatores muito
relevantes (como o clima), será que a prestação de serviços públicos em toda a Dinamarca, por exemplo, poderia ter o mesmo custo total que no
Brasil? Afinal, trata-se de um país com área igual a do Estado do Rio de Janeiro, que
representa 0,5% do território brasileiro.
Aqui, como previsto, novamente, a
comparação da arrecadação total parece imprestável como critério para avaliar
a adequação da qualidade dos serviços prestados.
E, novamente, tomando a
arrecadação de cada país e a área de seu território, temos um índice ainda
imperfeito, mas um pouco mais útil: o da arrecadação por Km². Com ele, afere-se, pela média, aproximadamente quanto cada Estado dispõe para prestar todos os serviços necessários em cada Km² de
seu território.
Aqui, antes de apresentar os
números, que, mais uma vez, parecem desautorizar o mito dos serviços caros e de
má qualidade, uma digressão parece pertinente.
Neste ponto específico, não é
possível desconsiderar que os países hoje chamados desenvolvidos, em períodos
mais ou menos recentes, foram destino de maciças transferências de recursos
oriundos de suas colônias ou zonas de influência. Para além de qualquer disputa
ideológica acerca da legitimidade e justiça deste processo, o fato é que montanhas de recursos
foram transferidas para aquelas potências.
Assim, hoje, muitos países
desenvolvidos contam com uma grande infraestrutura consolidada, parcialmente construída com
recursos extraídos de suas antigas colônias. Os magníficos, e por nós tão
invejados, metrôs de Londres e Paris, por exemplo, foram em parte construídos
numa época em que a Inglaterra e a França contavam com grandes volumes de
recursos oriundos da atividade imperial.
De qualquer forma, independente
da origem dos recursos utilizados para tal, os países desenvolvidos já contam
com uma infraestrutura básica construída e consolidada. São hospitais, museus, universidades, escolas, saneamento básico, linhas férreas, estradas, parques etc prontos e disponíveis pra uso, sem o custo de sua construção. Portanto, enquanto a arrecadação
atual desses países custeia apenas a manutenção, modernização e expansão destes sistemas,
países como o Brasil ainda têm muito a construir – contando apenas com os recursos
auferidos pela arrecadação tributária ou mobilizados de outras formas livres.
Mas, apesar disso, pode ser
interessante comparar as arrecadações por km² de cada país.
E, aqui, mais uma vez, parece que os dados não dão suporte ao mito do país que arrecada muito, mas presta serviços de 3º mundo. Na verdade, daquela lista das 70 maiores economias do mudo, o Brasil aparece apenas 47º lugar em termos de arrecadação por km², com um montante de 93.616 U$/Km² [6].
Retomando o exemplo do Reino
Unido, com sua arrecadação equivalente a nossa, isso quer dizer que os
governantes ingleses contam com uma arrecadação por km² 34 vezes maior que a
brasileira, já que eles arrecadam cerca de 3.220.000 U$/Km².
E o Reino Unido é apenas o 9º no ranking das maiores arrecadações por Km², atrás de países como a Holanda, que arrecada 72 vezes mais que o Brasil (ou 6.711.650 U$/Km²), e a Coréia do Sul e sua arrecadação de 4.040.754 U$/Km² (ou 43 vezes a nossa arrecadação).
Por outro lado, com arrecadação
mais próxima da brasileira, além daqueles inclusos no gráfico acima, temos
países como Tailândia (177.073 U$/Km²), Bielorrússia (172.236 U$/Km²),
Bangladesh (170.688 U$/Km²) e Filipinas (168.704 U$/Km²).
E a pergunta se impõe: comparada com os números acima, nossa arrecadação
realmente é de 1º mundo? Ela consegue sustentar o mito de que, por termos uma
carga tributária alta, pagamos impostos de 1º mundo e recebemos serviços públicos
de 3º mundo? Seria viável esperarmos que o Estado nos entregue um metrô
londrino ou uma anto-estrada alemã, custeados apenas com uma arrecadação 30 vez
menor que a do Reino Unido ou da Alemanha?
E, indo além, será que realmente se sustenta o discurso fácil, e paralisante, de que sempre existem recursos para todas as necessidades públicas, mas não existe vontade política para atendê-las? Será que procede o mantra, quase onipresente, segundo o qual os governos arrecadam dinheiro de sobra, mas eles são todos ladrões e/ou incompetentes e, só por isso, nossos serviços e infraestrutura são péssimos?
Esse discurso impede a valorização do pouco que conseguimos construir com bem pouco e das soluções que nos permitiram essas realizações. As resposta pronta, acrítica e fácil de que, sim, sempre, o dinheiro existe, mas motivos escusos impedem a solução dos problemas, faz com que não se busque uma saída que se adeque à escassez de recursos e com que não valorizemos quem o faz - mas, claro, não resolve tudo.
Não se trata de deitar em berço esplendido, fingindo que "está tudo bem"; mas de superar esse discuso enraizado, colado no complexo de vira-latas, que, por intransponível e irreal, nos afasta da apreciação dos problemas reais e da procura por soluções. Essa ideia de que, aqui, nada presta apenas porque eles (sempre eles) são incompetentes/corruptos/fisiológicos - já que o dinheiro existe - só nos faz desesperançar e esperar por uma salvação - ou um salvador, que perigo!
E, indo além, será que realmente se sustenta o discurso fácil, e paralisante, de que sempre existem recursos para todas as necessidades públicas, mas não existe vontade política para atendê-las? Será que procede o mantra, quase onipresente, segundo o qual os governos arrecadam dinheiro de sobra, mas eles são todos ladrões e/ou incompetentes e, só por isso, nossos serviços e infraestrutura são péssimos?
Esse discurso impede a valorização do pouco que conseguimos construir com bem pouco e das soluções que nos permitiram essas realizações. As resposta pronta, acrítica e fácil de que, sim, sempre, o dinheiro existe, mas motivos escusos impedem a solução dos problemas, faz com que não se busque uma saída que se adeque à escassez de recursos e com que não valorizemos quem o faz - mas, claro, não resolve tudo.
Não se trata de deitar em berço esplendido, fingindo que "está tudo bem"; mas de superar esse discuso enraizado, colado no complexo de vira-latas, que, por intransponível e irreal, nos afasta da apreciação dos problemas reais e da procura por soluções. Essa ideia de que, aqui, nada presta apenas porque eles (sempre eles) são incompetentes/corruptos/fisiológicos - já que o dinheiro existe - só nos faz desesperançar e esperar por uma salvação - ou um salvador, que perigo!
O Brasil não é um país rico. Nosso PIB está entre os 10 maiores, mas, além de ser bem inferior ao dos primeiros colocados, ele tem que ser distribuído pela 5ª maior população do mundo, espalhada num território continental. O Brasil é um país pobre, ou em desenvolvimento, como queiram - e a miragem do PIB que parece de rico não pode escamotear essa verdade e uma outra.
A verdade é que, apesar dos recursos escassos, nós até que já fizemos alguma coisa. E, se conseguimos isso, com muito trabalho e com as escolhas certas, podemos fazer muito mais.
******
Território x população (ou brincando com números)
Por fim, num último esforço de “análise”,
tão pouco sofisticado quanto os anteriores e ainda mais frágil que eles, brincando com os números, fabriquei
um índice que agrega os dois fatores: área do território e tamanho da
população.
Imagino que seja mais dispendioso
prestar serviços para muita gente em grandes áreas, que para uma população pequena
esparramada nessa mesma área; da mesma forma, uma população pequena concentrada
em um pequeno território deve impor menos custos que uma grande população
concentrada no mesmo espaço.
Obviamente, não tenho ideia das
relações que podem se estabelecer entre estes dois fatores, bem como entre eles com aquele
referente à distribuição da população pelo território. Assim, ARBITRARIAMENTE, dividi
a arrecadação de cada país pelo produto da área de seu território com o seu
número de habitantes.
Talvez, de tão arbitrário, esse
novo índice não signifique mesmo nada – e, por isso, ele nem devesse ser citado (por isso, aliás, a conclusão deste texto foi incluída antes deste trecho).
Mas os números são interessantes demais para não serem sequer jogados aqui,
ainda que com apenas este comentário: por este índice, o Brasil tem a 61ª arrecadação (por hab*Km²), na frente apenas da Rússia, Argélia, Paquistão, Indonésia, Índia, Nigéria e China [7].