quarta-feira, 25 de julho de 2012

A carga tributária e o discurso fácil da falta de vontade política


Este texto encerra uma proposta iniciada nesta outra publicação: A carga tributária, os "tributos de país desenvolvido" e os serviços públicos brasileiros. Inspirados numa ideia apresentada aqui, pelo Miguel do Rosário, eles tentam enxergar, sob uma nova perspectiva, a tão comentada (e falaciosa) relação entre a carga tributária e a expectativa de qualidade dos serviços prestados pelos governos brasileiros [1].

O primeiro texto tentou mostrar que, como serviços são custeados com recursos financeiros, e não com percentuais abstratos, as suas quantidade e qualidade não tem relação direta com a carga tributária, mas sim com a efetiva arrecadação dos governos. Assim, não existiria qualquer lógica em, tendo em vista nossa carga tributária, avaliar comparativamente a atuação dos governos brasileiros e exigir deles serviços públicos “de 1º mundo” - se, na verdade, aqui, conta-se com bem menos recursos que os governos de países desenvolvidos.

Em outras palavras: talvez nossos serviços sejam de 3º mundo porque a nossa arrecadação, ao contrário do que parece, é de país pobre.

Dos arquivos do blog:
Desde a implantação do Bolsa Família, a Taxa de Natalidade já caiu 25%

Como já indicado no fim do texto anterior, a simples comparação da arrecadação total de cada país, apesar superar parte do problema, também não oferece um critério muito seguro. Diversas variáveis presentes na realidade de cada país impõem desafios específicos, que criam necessidades distintas e influem nos custos dos serviços, complicando a utilização da arrecadação total como critério para a comparação.

Entre outros fatores, os países diferem entre si pelo tamanho do território; pelo tamanho da população; pela riqueza já acumulada; pela forma de Estado; pelo sistema de governo; pelo clima; pela morfologia do relevo e pela geologia; pela disponibilidade de recursos naturais; e, como dito, mais uma infinidade de variáveis. Em maior ou menor grau, todas elas podem afetar a quantidade de serviços públicos necessários, bem como o custo de sua execução pelos governos.

Desta forma, uma comparação razoável entre dois ou mais países, no que concerne à adequação (ou não) entre o preço pago pela sociedade, por meio de tributos, e a qualidade dos serviços prestados, não pode deixar de levar em conta os fatores que os diferenciam.

Isto é: não dá, por exemplo, pra avaliar comparativamente os serviços públicos prestados por dois Estados (A e B) com a mesma arrecadação, se A tem o triplo da população de B, espalhada por um território 34 vezes maior. E são exatamente essas as relações entre as arrecadações e os tamanhos dos territórios e populações do Brasil (A) e Reino Unido (B) [2] [3].

Como disse, sei que um enorme número de variáveis torna a comparação extremamente complexa. Por outro lado, este blogueiro não dispõe do know-how e da estrutura necessários para uma análise mais profunda, que leve em conta todos esses fatores, além das relações entre eles. E, ainda que os tivesses, um publicação num blog, feita nas horas vagas, obviamente não seria lugar para isso.

Contudo, desde que feita a ressalva de sua superficialidade, pode ser bem oportuno colacionar e comparar os dados referentes à arrecadação de diversos países e sua proporção em relação a duas variáveis bem acessíveis: a área do território e o tamanho da população. Ainda que superficial, ela parece indicar claramente o descabimento do mito segundo o qual o brasileiro pagaria tributos de 1º mundo em troca de serviços de 3º mundo.

Na verdade, considerados os dois fatores referidos, os recursos disponíveis para os nossos governos são bem menores que os arrecadados nos países desenvolvidos.

População
A relação entre o tamanho da população e o volume de recursos necessários para a prestação de serviços públicos é, me parece, intuitiva. Mais “clientes” importa na necessidade de mais profissionais e de uma estrutura maior, além dos demais custos específicos de cada prestação. Mesmo considerando a economia de escala, colocar serviços de atenção à saúde à disposição de 10 milhões de pessoas, por exemplo, não pode ter o mesmo custo de fazê-lo para 200 milhões de pessoas.

Assim, supondo idênticas as arrecadações totais, é inviável exigir de um país a mesma qualidade dos serviços prestados em outro, se a população do segundo é 3 ou 4 vezes menor que a do primeiro. O mesmo volume de recursos, que basta em um deles, com sua reduzida população, pode não ser suficiente para prestar serviços para a enorme população do outro.

Aqui, como previsto, a comparação da arrecadação total torna-se imprestável.

Mas, tomando a arrecadação de cada país e a sua população, é possível obter um índice um pouco mais útil, ainda que falho: o da arrecadação por habitante. Dá pra saber, com isso, de quanto dispõe cada Estado para prestar todos os serviços públicos para cada um de seus habitantes – e, aí, com um pouco mais de propriedade, avaliar comparativamente se ele faz bom uso desses recursos.

Da mesma forma, esse mesmo cálculo permite ter uma ideia do outro lado da mesma moeda: quanto cada habitante de cada país paga pelos serviços que recebe – e, com isso, quem sabe, concluir se ele paga caro por serviços ruins.

E o que revela esse índice?

Bem, o mito dos tributos altos para serviços ruins adora comparar os serviços públicos brasileiros (e nossos hospitais, ruas, estradas, metrôs, escolas, aeroportos etc) aos geridos pelos gestores públicos noruegueses, suecos e japoneses, por exemplo. Diz ele, o mito, que nossa carga tributária é equivalente a deles (nos dois primeiros casos, na verdade, é menor [4]), mas nossos serviços não são iguais, o que os tornaria caros.

Contudo, enquanto o Brasil arrecada U$3.875 por habitante, a Noruega arrecada U$23.456 por habitante; a Suécia, U$19.704; e o Japão, coitadinho, U$ 9.921. Isto é: os governos noruegueses dispõem de 6 vezes mais recursos por habitante que os seus correlatos brasileiros para prestarem serviços públicos; e, reverso da moeda, na média, cada cidadão brasileiro paga 1/6 do que o cidadão norueguês paga pelos serviços públicos.

Na outra ponta, a nossa carga tributária, sempre considerada gigantesca, garante aos governos brasileiros uma arrecadação per capita semelhante à da  Bielorrússia, Romênia e Turquia.

Grafico comparativo da arrecadação de tributos por habitante em diversos paises

Em verdade, tomados os dados das 70 maiores economias do mundo [5], o Brasil é apenas o 33º colocado em arrecadação por habitante. Ele fica atrás, por exemplo, além dos países incluídos no gráfico acima, da Áustria (U$18.562); Suíça (U$13.623); Itália (U$12.285); Irlanda (U$10.827); Nova Zelândia (U$8.867); e Singapura (U$7.778). Mais próximos a nós, ficam Argentina (U$5.434); Qatar (U$5.288); Taiwan (U$3.224); Ucrânia (U$ 2.745); África do Sul (U$ 2.685); e Cazaquistão (U$ 2.694).

E, aí, será que dá mesmo pra dizer que estamos pagando “preço de 1º mundo por serviços de 3º mundo”?

Território
Ainda que outas questões a afetem, a proporção direta entre o tamanho da “área de atuação” e um custo maior na prestação de serviços também não parece difícil de ser aceita, especialmente se a ocupação, ainda que desigual, estiver disseminada por todo o território. Um país maior exige estruturas viárias e de transportes em geral mais amplas; impõe a criação de instituições estatais descentralizadas (justiça, fiscalização, e administração propriamente dita); requer a instalação de hospitais (e demais serviços de saúde) e escolas suficientemente próximas das diversas concentrações populacionais; etc.

Abstraídos outros fatores muito relevantes (como o clima), será que a prestação de serviços públicos em toda a Dinamarca, por exemplo, poderia ter o mesmo custo total que no Brasil? Afinal, trata-se de um país com área igual a do Estado do Rio de Janeiro, que representa 0,5% do território brasileiro.

Aqui, como previsto, novamente, a comparação da arrecadação total parece imprestável como critério para avaliar a adequação da qualidade dos serviços prestados.

E, novamente, tomando a arrecadação de cada país e a área de seu território, temos um índice ainda imperfeito, mas um pouco mais útil: o da arrecadação por Km². Com ele, afere-se, pela média, aproximadamente quanto cada Estado dispõe para prestar todos os serviços necessários em cada Km² de seu território.

Aqui, antes de apresentar os números, que, mais uma vez, parecem desautorizar o mito dos serviços caros e de má qualidade, uma digressão parece pertinente.

Neste ponto específico, não é possível desconsiderar que os países hoje chamados desenvolvidos, em períodos mais ou menos recentes, foram destino de maciças transferências de recursos oriundos de suas colônias ou zonas de influência. Para além de qualquer disputa ideológica acerca da legitimidade e justiça deste processo, o fato é que montanhas de recursos foram transferidas para aquelas potências.

Assim, hoje, muitos países desenvolvidos contam com uma grande infraestrutura consolidada, parcialmente construída com recursos extraídos de suas antigas colônias. Os magníficos, e por nós tão invejados, metrôs de Londres e Paris, por exemplo, foram em parte construídos numa época em que a Inglaterra e a França contavam com grandes volumes de recursos oriundos da atividade imperial.

De qualquer forma, independente da origem dos recursos utilizados para tal, os países desenvolvidos já contam com uma infraestrutura básica construída e consolidada. São hospitais, museus, universidades, escolas, saneamento básico, linhas férreas, estradas, parques etc prontos e disponíveis pra uso, sem o custo de sua construção. Portanto, enquanto a arrecadação atual desses países custeia apenas a manutenção, modernização e expansão destes sistemas, países como o Brasil ainda têm muito a construir – contando apenas com os recursos auferidos pela arrecadação tributária ou mobilizados de outras formas livres.

Mas, apesar disso, pode ser interessante comparar as arrecadações por km² de cada país.

E, aqui, mais uma vez, parece que os dados não dão suporte ao mito do país que arrecada muito, mas presta serviços de 3º mundo. Na verdade, daquela lista das 70 maiores economias do mudo, o Brasil aparece apenas 47º lugar em termos de arrecadação por km², com um montante de 93.616 U$/Km² [6].

Grafico comparativo da arrecadação de tributos por km2 em diversos paises

Retomando o exemplo do Reino Unido, com sua arrecadação equivalente a nossa, isso quer dizer que os governantes ingleses contam com uma arrecadação por km² 34 vezes maior que a brasileira, já que eles arrecadam cerca de 3.220.000 U$/Km².

E o Reino Unido é apenas o 9º no ranking das maiores arrecadações por Km², atrás de países como a Holanda, que arrecada 72 vezes mais que o Brasil (ou 6.711.650 U$/Km²), e a Coréia do Sul e sua arrecadação de  4.040.754 U$/Km² (ou 43 vezes a nossa arrecadação).

Por outro lado, com arrecadação mais próxima da brasileira, além daqueles inclusos no gráfico acima, temos países como Tailândia (177.073 U$/Km²), Bielorrússia (172.236 U$/Km²), Bangladesh (170.688 U$/Km²) e Filipinas (168.704 U$/Km²).

E a pergunta se impõe: comparada com os números acima, nossa arrecadação realmente é de 1º mundo? Ela consegue sustentar o mito de que, por termos uma carga tributária alta, pagamos impostos de 1º mundo e recebemos serviços públicos de 3º mundo? Seria viável esperarmos que o Estado nos entregue um metrô londrino ou uma anto-estrada alemã, custeados apenas com uma arrecadação 30 vez menor que a do Reino Unido ou da Alemanha?

E, indo além, será que realmente se sustenta o discurso fácil, e paralisante, de que sempre existem recursos para todas as necessidades públicas, mas não existe vontade política para atendê-las? Será que procede o mantra, quase onipresente, segundo o qual os governos arrecadam dinheiro de sobra, mas eles são todos ladrões e/ou incompetentes e, só por isso, nossos serviços e infraestrutura são péssimos?

Esse discurso impede a valorização do pouco que conseguimos construir com bem pouco e das soluções que nos permitiram essas realizações. As resposta pronta, acrítica e fácil de que, sim, sempre, o dinheiro existe, mas motivos escusos impedem a solução dos problemas, faz com que não se busque uma saída que se adeque à escassez de recursos e com que não valorizemos quem o faz - mas, claro, não resolve tudo.

Não se trata de deitar em berço esplendido, fingindo que "está tudo bem"; mas de superar esse discuso enraizado, colado no complexo de vira-latas, que, por intransponível e irreal, nos afasta da apreciação dos problemas reais e da procura por soluções. Essa ideia de que, aqui, nada presta apenas porque eles (sempre eles) são incompetentes/corruptos/fisiológicos - já que o dinheiro existe - só nos faz desesperançar e esperar por uma salvação - ou um salvador, que perigo!

O Brasil não é um país rico. Nosso PIB está entre os 10 maiores, mas, além de ser bem inferior ao dos primeiros colocados, ele tem que ser distribuído pela 5ª maior população do mundo, espalhada num território continental. O Brasil é um país pobre, ou em desenvolvimento, como queiram - e a miragem do PIB que parece de rico não pode escamotear essa verdade e uma outra.

A verdade é que, apesar dos recursos escassos, nós até que já fizemos alguma coisa. E, se conseguimos isso, com muito trabalho e com as escolhas certas, podemos fazer muito mais.

******

Território x população (ou brincando com números)
Por fim, num último esforço de “análise”, tão pouco sofisticado quanto os anteriores e ainda mais frágil que eles, brincando com os números, fabriquei um índice que agrega os dois fatores: área do território e tamanho da população. 

Imagino que seja mais dispendioso prestar serviços para muita gente em grandes áreas, que para uma população pequena esparramada nessa mesma área; da mesma forma, uma população pequena concentrada em um pequeno território deve impor menos custos que uma grande população concentrada no mesmo espaço.

Obviamente, não tenho ideia das relações que podem se estabelecer entre estes dois fatores, bem como entre eles com aquele referente à distribuição da população pelo território. Assim, ARBITRARIAMENTE, dividi a arrecadação de cada país pelo produto da área de seu território com o seu número de habitantes.

Talvez, de tão arbitrário, esse novo índice não signifique mesmo nada – e, por isso, ele nem devesse ser citado (por isso, aliás, a conclusão deste texto foi incluída antes deste trecho). Mas os números são interessantes demais para não serem sequer jogados aqui, ainda que com apenas este comentário: por este índice,  o Brasil tem a 61ª arrecadação (por hab*Km²), na frente apenas da Rússia, Argélia, Paquistão, Indonésia, Índia, Nigéria e China [7].

Grafico comparativo da arrecadação por hab e km2 em diversos países

Grafico comparativo da arrecadação por hab e km2 em diversos paises







A carga tributária, os "tributos de país desenvolvido" e os serviços públicos brasileiros

O brasileiro paga tributos como num país desenvolvido para receber serviços públicos "de 3º mundo"?

Talvez não.

Isso mesmo. Vou repetir: talvez a gente não pague tributos demais pelos serviços que os governos prestam. Em outras palavras, aquela verdade sabida segundo a qual a gente pagaria caro por serviços de péssima qualidade pode ser uma ilusão.

Antes de me xingar, tente ler o texto abaixo, assim como este outro: A carga tributária e o discurso fácil da falta de vontade política. Eles tentam revelar outra perspectiva sobre a questão, baseada na indicação de uma falácia matemática e na colação de alguns dados para comparação.

De início, porém, uma ressalva: isto não é uma tese, mas apenas um textinho impertinente num blog; e, obviamente, seu objeto é restrito. Ele tratará de apenas uma das muitas questões suscitadas pelo sistema tributário brasileiro: a suposta desproporcionalidade entre a carga tributária (confundida com montante de tributos pagos) e a qualidade dos serviços públicos prestados.

Tal opção, entretanto, não importa menosprezo por outras questões, tais como: a acachapante complexidade do nosso sistema tributário; a injusta distribuição da carga tributária; e a desvantagem competitiva, em âmbito internacional, de uma carga tributária elevada. Trata-se apenas de tentar jogar uma luz sobre um ponto específico, acerca do qual existe uma mistificação que atrapalha a discussão dos demais.

Essa mistificação, aliás, tem um outro efeito, que transborda a questão especificamente tributária. A premissa de que os governos brasileiros cobram mais tributos que em outros lugares tem usualmente induzido a conclusão de que não falta dinheiro para a prestação de nenhum serviço. É a velha ideia de que "dinheiro existe; o que falta é vontade política; o que falta é competência". E se os recursos forem realmente mais escassos que nos países que adotamos como parâmetro?

Dos arquivos do blog:
Desde a implantação do Bolsa Família, a Taxa de Natalidade já caiu 25%

Mas, voltando, o ponto é o seguinte: será que nós, brasileiros, pagamos tributos demais em troca de serviços sem qualidade? Ou então, e já utilizando a frase que tenta induzir, com uma falácia, a resposta positiva: “o Brasil tem uma carga tributária de 1º mundo e serviços de 3º mundo?”

O discurso comum, divulgado quase diariamente pelos meios de comunicação, afirma exatamente isto: que o Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo; e que, apesar de ter carga tributária de país rico, tem serviços públicos de país de terceiro mundo. Como se uma coisa tivesse muito a ver com a outra; como se alguém (governos, inclusive) pagasse ou custeasse algo com porcentagens.

O que costumamos chamar de carga tributária nada mais é que uma referência à fração, ao percentual, do PIB apropriado pelos governos [1] por meio da cobrança de tributos. Trata-se, na verdade, de uma proporção entre a arrecadação de tributos e o PIB do país, expresso por meio de uma porcentagem.

E é aí que mora a falácia: comparam-se grandezas relativas, sem levar em conta aquilo a que elas se referem, o dado concreto, ou seja, o PIB. Desconsideram-se as diferenças entre os PIBs de cada país e comparam-se os percentuais dos PIBs (carga tributária) que as sociedades pagam pelos serviços, como se o preço de algo pudesse ser expresso em frações – além de tudo, aplicadas sobre totais diferentes.

Imagine, por exemplo, que você recebeu duas propostas de trabalho inconciliáveis: numa, a remuneração será de 15% do subsídio de Ministro do STF [2]; na outra, será de 30% do piso salarial do magistério [3]. Pela lógica normalmente utilizada na comparação de cargas tributárias, a escolha teria que recair sobre a segunda proposta – afinal, comparando-se as frações, 30% é maior que 15%. Só que, porque você esqueceu de levar em conta o dado concreto a que o percentual se refere (lá, o PIB; aqui, o salário de referência), você teria uma remuneração 9 vezes menor. [4]

É óbvio, portanto, que o que importa, seja em termos do valor pago por um serviço, seja em termos de fundos disponíveis para que um governo preste os serviços públicos, não é um valor abstrato, um percentual de carga tributária. Serviços são pagos - e, pela ótica do prestador, são custeados - com um valor em espécie, que a lógica da comparação de cargas tributárias desconsidera.

Vamos a um exemplo prático.

O Brasil tem uma carga tributária de cerca de 34,30% do PIB. A carga tributária dos EUA é de 24% [5]. Segundo a falácia apontada, isso significaria que os serviços públicos aqui são caros em relação aos prestados lá. E mais, significaria que o gestor público brasileiro é incompetente (ou ladrão), já que não consegue prestar serviços comparáveis aos norte-americanos, apesar de dispor de mais tributos.

O problema é que esta análise facciosa esquece que o PIB norte-americano (U$ 15,3 trilhões) é quase 7 vezes maior que o PIB brasileiro (U$ 2,2 trilhões) [6]. Ou seja, para prestar os serviços públicos sob sua responsabilidade, o incompetente gestor brasileiro dispõe de cerca de 20% dos recursos postos à disposição dos gestores norte-americanos para o mesmo fim – isso se levarmos em conta só a arrecadação de tributos e deixarmos de lado a capacidade de endividamento quase infinita dos EUA.


E, aí, superada a falácia da comparação de cargas tributárias, fica a pergunta: dá para esperar serviços de 1º mundo (dos EUA, por exemplo) com uma arrecadação 5 vezes menor? Levando em conta que ela paga apenas 1/5 do montante de tributos pagos pela norte-americana, a sociedade brasileira realmente paga caro pelos serviços que recebe?

Ainda dá pra gente dizer, como até mesmo alguns políticos fazem, que, como temos uma das maiores cargas tributárias do mundo: “é obvio que o dinheiro para tal e tal serviços existem; o que falta é competência; ou o que falta é vontade política”?

É claro que temos também problemas de gestão; é claro, também, que a corrupção e a sonegação representam enormes entraves; é claro que, muitas vezes, os gestores não estão interessados em resolver os problemas. Mas a resposta fácil, de que a carga tributária indica que sempre existem recursos para “serviços de 1º mundo”, é falsa. E presos a ela, sem superá-la, nunca construiremos soluções para os problemas reais – como a escassez de recursos, por exemplo.

E o caso dos EUA fornece apenas um exemplo; o mais óbvio, pela grande diferença na arrecadação absoluta, mas não o mais eloquente, se considerados outros fatores, como a população atendida e o território no qual ela se distribui. A comparação da situação brasileira com esses outros exemplos pode ser bem interessante para superarmos esta paralisante falácia da carga tributária como índice de volume de recursos disponíveis para a prestação de serviços públicos.

Contudo, como este texto já está bastante longo, os outros dados e comparações foram apresentados nesta outra publicação:  A carga tributária e o discurso fácil da falta de vontade política.

Fica aqui, entretanto, um petisco.

Tendo em vista uma dupla coincidência (de carga tributária e de tamanho do PIB), o caso do Reino Unido fornece um exemplo interessante. Isso porque, considerada apenas a arrecadação de tributos, os gestores dos dois países dispõem de montantes de recursos equivalentes para prestarem seus serviços - o que,  não há como não reconhecer, contrariaria tudo que foi dito acima. Afinal, com os mesmo U$ 800 bilhões que o Brasil arrecada, o Reino Unido consegue prestar serviços muito melhores.

Mas essa análise apresada não atenta para (pelo menos) duas (das muitas) diferenças entre os dois países, que representam uma brutal disparidade nos desafios apresentados aos dois Estados. A população do Brasil é o triplo da que tem o Reino Unido, cujo território, além disso, é mais de 30 vezes menor que o nosso. Ou seja, com uma mesma arrecadação, o Estado brasileiro deve prestar serviços para o triplo de pessoas, espalhadas por um território 30 vezes maior [7].

A situação resultante é mais ou menos esta:


Ou seja, levando em conta os tamanhos das populações, para que os governos brasileiros dispusessem de um montante de recursos equivalente ao posto a disposição dos governos ingleses, seria necessário uma arrecadação de cerca de U$ 2,5 trilhões,  valor maior que o nosso PIB anual. Aliás, mantida a carga tributária atual, esse volume de arrecadação exigiria um PIB da ordem dos U$ 7 trilhões, que é o dobro do produto interno da Alemanha.

E a pergunta martela, será que "os recursos existem, mas somos incompetentes para transformá-los em serviços decentes"?

PS: este texto provavelmente só existe porque, antes, o Miguel do Rosário escreveu "A falácia da carga tributária no Brasil".

terça-feira, 24 de julho de 2012

Rodrik: A demanda interna, a dívida pública controlada e a democracia robusta são pontos fortes do Brasil contra a crise.


24 julho de 2012 às 9:52 am

Dani Rodrik

O economista Dani Rodrik não embarcou na recente onda de pessimismo em relação à economia brasileira. Para o professor de economia política internacional da Universidade de Harvard (EUA), o Brasil tem condições de crescer a taxas de 5% ao ano mesmo no ambiente adverso que ele antevê para a economia global, de baixo crescimento por muitos anos, especialmente nos países desenvolvidos.

“O Brasil obviamente será afetado de modo negativo pelos acontecimentos na Europa e nos EUA e também pela provável desaceleração da China. Mas o Brasil tem alguns pontos fortes”, disse Rodrik, citando as finanças públicas em ordem e o regime democrático estável, mencionando também a grande classe média como um trunfo importante do país.

O economista turco será um dos principais convidados do seminário “O Brasil e o Mundo em 2022″, promovido pelo BNDES em comemoração aos 60 anos do banco. O evento ocorre hoje e amanhã no Rio, no Espaço Tom Jobim.

Rodrik vê o Brasil, ao lado de Índia e Coreia do Sul, como um dos países “relativamente mais bem posicionados” para enfrentar esse cenário externo adverso dos próximos anos – o crescimento depende mais da demanda interna do que das exportações, a dívida pública está controlada e a democracia é robusta.

São vantagens importantes num mundo que, segundo ele, tem 50% de possibilidade de testemunhar a dissolução parcial da zona do euro nos próximos anos, além do risco de manutenção do impasse entre democratas e republicanos sobre a trajetória fiscal americana.

Rodrik tampouco é otimista quanto às perspectivas para a China, um país que não é democrático e ainda é muito dependente das exportações.

Para o Brasil crescer a um ritmo de 5%, ele aponta como fundamental “sinalizar um ambiente em que serão mantidos os incentivos relativos para o investimento na indústria manufatureira e em outros setores tradables [comercializáveis internacionalmente]“, o que requer juros baixos e um câmbio relativamente competitivo.

“Se as políticas em curso conduzirem a essa combinação, já será uma grande ajuda”, afirmou Rodrik, que vê ainda com bons olhos as iniciativas do governo de reduzir impostos para setores específicos e tentar impulsionar o investimento por meio do BNDES.

“O que o Brasil está tentando fazer é um esforço que vale a pena, desde que seja pragmático e revisado à luz da evidência de seu impacto”, diz ele, para quem o verdadeiro teste desse tipo de política é saber desistir dos perdedores, não insistindo com setores, se ficar claro que as medidas não dão resultado.

“A própria experiência do Brasil no passado oferece muitas lições nesse sentido. Algumas políticas industriais não foram muito bem-sucedidas, como no setor de informática, mas outras, como no setor de aço e aviões, foram muito bem-sucedidas”, disse Rodrik, um crítico da globalização exagerada. A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por telefone, na sexta-feira.

Valor
Em artigo recente, o sr. diz que “a economia mundial está entrando numa nova fase difícil a longo prazo – fase que será substancialmente menos favorável para o crescimento do que possivelmente qualquer outro período desde o fim da Segunda Guerra Mundial”. O mundo está condenado a uma longa era de baixo crescimento?

Dani Rodrik
É muito provável que as próximas décadas tenham crescimento substancialmente menor do que nas duas ou três décadas anteriores à crise financeira.

Há várias razões para isso. A primeira é que os países avançados têm uma dívida pública muito elevada, o que reduz o crescimento.

A outra é que a crise atual na zona do euro também deve ter implicações negativas para as perspectivas de crescimento de longo prazo.

Valor
Por que o sr. não acredita que os países emergentes, em especial a China, tenham um papel importante para impulsionar a economia global, como em 2008 e 2009?

Rodrik
Em primeiro lugar, porque eles não são, em conjunto, tão grandes como os países ricos. Além disso, porque o crescimento dos mercados emergentes nos últimos anos dependeu de um ambiente global permissivo, com mercados abertos nos países industrializados e a disposição dos países desenvolvidos de olhar para o outro lado, enquanto países como a China promoviam amplas políticas industriais para reestruturar as suas economias.

A economia global será muito menos permissiva nesse sentido, o que também vai deprimir o potencial de crescimento dos países emergentes.

Valor
O sr. está preocupado com uma onda protecionista?

Rodrik
Em parte haverá maior protecionismo, mas de modos mais sutis – não estou falando de algo como a onda que ocorreu nos anos 30.

Mas potências exportadoras como a China vão ter mais dificuldades para ter grandes superávits comerciais com os países avançados do que tiveram no passado.

Haverá muito menos cooperação e coordenação global, porque os países ricos vão estar mais preocupados com questões internas.

Valor
A cúpula da União Europeia no fim de junho decidiu pela recapitalização direta dos bancos, mas o rendimentos dos títulos públicos espanhóis e italianos continuaram em níveis altos. Por que a decisão não acalmou os mercados?

Rodrik
Infelizmente, os líderes políticos europeus têm ficado consistentemente atrás dos mercados. Eles sempre fazem o mínimo possível, atuando apenas para adiar os problemas, sem lidar com as questões fundamentais.

Valor
Qual é o cenário mais provável para a zona do euro? Uma ruptura ou os líderes vão conseguir manter a união monetária intacta?

Rodrik
Acho que uma dissolução parcial da zona do euro tem uma possibilidade de 50% de ocorrer nos próximos anos. Há uma boa chance de que a união monetária seja dissolvida.

Valor
Na semana passada, Barry Eichengreen [professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley] disse ao Valor que um colapso do euro seria um desastre financeiro. O sr. concorda com ele?

Rodrik
Eu concordo com ele. As consequências de curto prazo seriam devastadoras do ponto de vista econômico, e acho que haveria consequências políticas ainda mais sérias no médio prazo. É uma tragédia de primeira ordem.

Valor
Como se daria a dissolução da zona do euro?

Rodrik
Há um número de países centrais – Alemanha, Áustria, Holanda e Finlândia – que devem ficar numa união monetária a despeito do que ocorrer com a zona do euro. Mas o futuro de todos os outros está muito em dúvida.

Valor
A saída de algum país pode ocorrer ainda neste ano?

Rodrik
É bastante possível que a Grécia tenha que deixar a zona do euro por volta do fim do ano. Se isso ocorrer, haverá um grande esforço para assegurar que o contágio para países como Espanha e Itália seja limitado, o que pode comprar algum tempo para os outros países.

Valor
Como o sr. vê a estratégia europeia para enfrentar a crise? Há foco demais na austeridade?

Rodrik
Acho que a estratégia é falha, primeiro porque enfatiza demais a austeridade, deixando países como Grécia e Espanha num círculo vicioso em que a austeridade reduz o crescimento, exigindo mais austeridade fiscal, e assim por diante.

Em termos mais estruturais, os líderes políticos têm que decidir se vão dar um salto maior na direção de maior integração fiscal e política, assumindo um compromisso político com essa trajetória.

Ou, se forem incapazes de entrar num acordo em relação a essa opção mais ambiciosa, e a única solução real for menos união econômica, eles deveriam se preparar para isso, em vez de deixar o caos ocorrer.
O caminho de maior união fiscal e política seria de longe o melhor, porque evitaria os custos econômicos e políticos de uma ruptura. Infelizmente, à medida que o tempo passa, um desfecho favorável parece cada vez menos possível.

Valor
A recuperação dos EUA não parece sólida. Uma nova rodada de afrouxamento quantitativo [política monetária ultraexpansionista, de compra de títulos] ajudaria a sustentar a recuperação?

Rodrik
A política monetária pode ter algum papel, mas é imitado. O problema é que a política fiscal, acima de tudo, exerce um peso sobre a economia.

Nós precisamos de uma melhor estratégia fiscal, que enfatize menos consolidação fiscal agora, especialmente no nível dos Estados, e maior consolidação fiscal no futuro.

Valor
O sr. acredita que os democratas e republicanos vão conseguir evitar o abismo fiscal em 2013 [a combinação do fim de isenção de impostos e forte corte de gastos], que pode provocar uma violenta contração fiscal?

Rodrik
É muito difícil ser otimista em relação a isso, infelizmente. Esse risco continuará a afetar a recuperação e o crescimento.

Valor
Em artigo recente, o sr. diz que, no cenário global atual, Brasil, Índia e Coreia do Sul estão numa posição mais favorável do que o resto do mundo por serem democracias, terem um crescimento puxado pela demanda doméstica, e não pelas exportações, e por terem baixos ou moderados níveis de dívida pública. Esses países vão se sair bem mesmo nesse mundo adverso?

Rodrik
Eu tenho um prognóstico pessimista para a economia global como um todo, mas alguns países estão relativamente mais bem posicionados do que outros.

O Brasil obviamente será afetado de modo negativo pelos acontecimentos na Europa e nos EUA e também pela provável desaceleração da China.

Mas o Brasil tem de fato alguns pontos fortes, como as finanças macroeconômicas estáveis e o regime democrático estável.

Valor
Por que ser uma democracia é uma vantagem nesse cenário global adverso?

Rodrik
As democracias em geral são muito melhores em lidar com turbulência e incerteza, porque esses são os momentos que pedem conciliação e cooperação entre diferentes grupos sociais.

O que a democracia faz é oferecer os mecanismos institucionalizados para que essas barganhas ocorram. Quando se excluem essas barganhas, é verdade que se pode ter alguns ganhos de curto prazo, mas não há nenhum modo para responder ao dissenso e a oposição, o que frequentemente leva ao conflito.
Esse é um risco importante que a China pode enfrentar se a taxa de crescimento ficar mais fraca. Esse é um motivo importante pelo qual eu sou menos otimista em relação às perspectivas para a China.

Valor
Mas a China não tem um potencial mercado interno de grandes proporções?

Rodrik
Sem dúvida, mas eles têm que reorientar a estratégia de crescimento em direção ao mercado doméstico. Como o crescimento dependeu bastante de grandes superávits comerciais, essa mudança produziria um ajuste muito custoso, com fechamento de fábricas e trabalhadores perdendo os seus empregos. Seria muito difícil administrar esse processo.

Valor
Depois de vários anos de otimismo em relação à economia brasileira, muitos analistas e investidores se tornaram céticos em relação ao Brasil, em geral citando a falta de reformas estruturais e perspectivas piores para as commodities. Em que medida esses dois fatores podem prejudicar o Brasil?

Rodrik
O processo de reformas estruturais é de longo prazo. Ele sempre caminha com progressos e paradas. Nós não deveríamos ficar tremendamente preocupados com isso.

Em relação aos preços de commodities, eles têm produzido efeitos positivos e negativos para o Brasil. Obviamente a alta de preços estimula o crescimento no curto prazo, mas ao custo de afetar a indústria e valorizar a moeda, como consequência da doença holandesa. Por esse motivo, uma redução dos preços de commodities não é necessariamente algo ruim.

Valor
O sr. escreveu num artigo que, para os países em desenvolvimento, “o imperativo manufatureiro é nada menos do que vital”. A indústria manufatureira brasileira enfrenta uma crise de falta de competitividade, respondendo por 14,6% do PIB. Como esse problema afeta as perspectivas para o Brasil?

Rodrik
É um grande ponto de interrogação. O processo de desindustrialização é algo que está ocorrendo por todo o mundo. É uma questão de administrá-lo.

Eu não acho que o Brasil possa voltar a ter uma indústria respondendo por 20% a 25% do PIB, sem mencionar os 35% a 40% do PIB de alguns países asiáticos.

É uma corrida entre formar capital humano, para que se possa criar empregos de altos salários no setor de serviços, e a perda de emprego na indústria de trabalhadores relativamente pouco qualificados.

Valor
Mas esse problema na indústria não pode ofuscar as três qualidades que o sr. menciona, quando diz que o Brasil está mais bem posicionado que a maior parte dos países?

Rodrik
Comparado com muitos outros países, o Brasil tem capacidades significativas no setor manufatureiro. Não é uma questão de construir algo que não está lá.

A base é muito boa. Com a taxa de câmbio correta e um conjunto correto de políticas industriais, que o Brasil está tentando adotar, o país pode ter um setor manufatureiro saudável.

Valor
O Brasil tem hoje um câmbio mais desvalorizado em relação aos últimos anos e o Banco Central está cortando os juros de modo agressivo, pelo menos para os padrões brasileiros. Em que medida isso vai ajudar o crescimento?

Rodrik
Ela tem o potencial de ajudar um pouco a indústria e o crescimento geral, mas os investidores tomam decisões para períodos que não se limitam aos próximos seis meses ou um ano.

Eles fazem investimentos de longo prazo, de cinco anos, dez anos. Eles olham para o futuro e precisam de algum tipo de garantia de como estarão os juros e o câmbio não apenas hoje ou no mês que vem, mas daqui a dois anos ou daqui a cinco anos.

O que é necessário em termos de administração do câmbio e de política monetária é um ajuste de médio prazo, de sinalizar uma política que levará em conta a taxa de câmbio e a competitividade muito mais do que no passado.

Valor
O BC deve dizer diretamente que tem uma meta para a taxa de câmbio, ou pelo menos que se preocupa com o nível do câmbio?

Rodrik
Eu colocaria do seguinte modo. O nível do câmbio afeta o crescimento potencial da economia e, consequentemente, na medida em que a política monetária é influenciada pelo crescimento potencial, a taxa de câmbio naturalmente entra nas decisões de política monetária.

Há modos de trazer o nível do câmbio para as discussões de política monetária sem que seja necessário mudar fundamentalmente o arcabouço do regime de metas de inflação ou desistir da independência do BC.

Valor
Em março de 2011, o sr. disse, numa entrevista ao Valor, que o Brasil deveria crescer 7%, mas que, devido à combinação de juros altos e baixo investimento, 4% a 5% pareciam um sucesso. Neste mundo de baixo crescimento que o sr. antevê, que taxa o Brasil deve aspirar?

Rodrik
Acho que 5%, neste cenário global em que eu acredito, seria um grande sucesso.

Valor
O Brasil deve crescer menos de 2% neste ano. É algo cíclico ou mostra que crescer a taxas mais altas, como de 5%, é difícil?

Rodrik
Quando mencionei 5%, me refiro a uma média de médio prazo. Flutuações de um ano para o outro são naturais.

Valor
Então mesmo neste ambiente global adverso, ainda é possível para o Brasil crescer a essa taxa de 5% ao ano.

Rodrik
Acredito que, com os pontos fortes que tem, o Brasil é capaz de crescer 5%. O Brasil tem uma grande classe média, e tem potencial para crescer ainda mais.

Valor
O que o Brasil deve fazer para crescer a essa taxa?

Rodrik
A questão principal é sinalizar um ambiente em que se manterão os incentivos relativos para o investimento na indústria manufatureira e em outros setores tradables.

É um ambiente de juros baixos e um câmbio relativamente competitivo. Se as políticas em curso conduzirem a essa combinação, já será uma grande ajuda.

Valor
Muitos analistas criticam o governo brasileiro por cortar impostos para setores específicos e tentar usar o BNDES para impulsionar o investimento. Como o sr. avalia essas iniciativas?

Rodrik
Acho que, em geral, vale a pena experimentar políticas industriais desse tipo. O que o Brasil está tentando fazer é um esforço que vale a pena, desde que seja pragmático, revisado à luz da evidência do seu impacto.

Valor
Escolher setores específicos não é um problema?

Rodrik
Não estou tão preocupado com políticas econômicas seletivas, que favoreçam alguns setores em vez de outros. Tenho mais preocupação em continuar com essas políticas quando elas claramente não estão funcionando.

O teste real é se há capacidade de desistir dos perdedores. É isso o que quero dizer quando falo em abordagem pragmática.

A experiência do Brasil no passado oferece muitas lições nesse sentido. Algumas políticas industriais não foram muito bem-sucedidas, como no setor de informática, mas outras, como no setor de aço e aviões, foram muito bem-sucedidas. Muitas indústrias exportadoras brasileiras não existiriam hoje, se o país não tivesse adotado políticas seletivas no passado.

Fonte: Valor Econômico, Por Sergio Lamucci

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O relatório da OIT sobre os avanços e desafios revelados pelos indicadores do trabalho no Brasil

Texto do sítio da OIT no Brasil.

BRASÍLIA (Notícias da OIT) – O Brasil registrou avanços significativos em diversas áreas do trabalho decente nos anos recentes, mas ainda persistem inúmeros desafios. É o que constata o relatório “Perfil do Trabalho Decente no Brasil – Um Olhar sobre as Unidades da Federação”, que está sendo divulgado hoje (19) pelo Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.

Os avanços se verificaram nas dez dimensões do trabalho decente analisadas pelo relatório: Oportunidades de Emprego; Rendimentos Adequados e Trabalho Produtivo; Jornada de Trabalho Decente; Combinação entre Trabalho, Vida Pessoal e Vida Familiar; Trabalho a ser Abolido; Estabilidade e Segurança no Trabalho; Igualdade de Oportunidades e de Tratamento no Emprego; Ambiente de Trabalho Seguro; Seguridade Social e Diálogo Social e Representação de Trabalhadores e Empregadores.).

Vários deles foram mais acentuados nas regiões mais pobres do país e em grupos em situação de maior desvantagem no mercado de trabalho, como as mulheres e os negros. Como resultado, diminuíram as desigualdades (de gênero, raça e entre as regiões do país), ainda que, em muitos indicadores, o nível dessa desigualdade ainda seja bastante elevado.


Dos arquivos do blog:

Desde a implantação do Bolsa Família, a Taxa de Natalidade já caiu 25%


Essas são algumas das conclusões do estudo, que, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Censo Demográfico de 2010 e de outros registros administrativos e estatísticas oficiais, apresenta informações inéditas sobre as 27 Unidades da Federação do país

(…)

A elaboração do relatório foi precedida de um processo de consulta com os constituintes tripartites da OIT no País. Alguns dos seus principais resultados são os seguintes:

Alguns resultados importantes apresentados pelo  relatório:

Apesar da crise financeira internacional, o Brasil manteve a trajetória de declínio da taxa de desemprego
A taxa de desemprego nas seis maiores regiões metropolitanas do país, medida pela Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE, que tinha alcançado 9,0% em março de 2009, em decorrência da crise econômica internacional, começou a recuar em abril e continuou diminuindo fortemente ao longo de 2009, atingindo 6,8% em dezembro e encerrando o ano com uma taxa média de 8,4% - ainda num patamar superior ao observado em 2008 (7,2%). Embora a taxa tenha subido outra vez no início de 2010, – uma vez que mais pessoas entraram no mercado de trabalho em busca de emprego – já em setembro de 2010 ela  havia caído para 6,2%,  bem abaixo do nível pré-crise (7,6% em setembro de 2008, aferido pela PME), encerrando-se 2010  com uma taxa média anual de 6,7%, a menor do período 2003/2010. Em 2011, essa trajetória foi mantida,  a taxa declinou para 6,0%. 

O emprego formal cresceu de forma expressiva, sobretudo nas regiões mais pobres e com mercados de trabalho menos estruturados 
Entre 2003 e 2010 foram gerados no Brasil 15,38 milhões de postos formais de trabalho, configurando um aumento acumulado de +53,6% em um período de oito anos. A expansão do emprego formal se deu de forma generalizada em todas as cinco Grandes Regiões e 27 Unidades da Federação, sendo mais expressiva nas regiões mais pobres e caracterizadas por  mercados de trabalho menos estruturados, a exemplo das regiões Norte (+85,7%) e Nordeste (+64,9%).

Aumenta a Taxa de Formalidade, mas ainda persistem as desigualdades regionais e de gênero e de raça
Em função do aumento do emprego formal e das políticas de inclusão previdenciária, a Taxa de Formalidade evoluiu de 48,4% para 50,6% entre 2004 e 2006, ano em que, pela primeira vez, mais da metade dos trabalhadores e trabalhadoras passou a ocupar um posto formal de trabalho. Essa tendência de crescimento se manteve durante os anos subsequentes e alcançou 54,3% no ano de 2009, não sendo nem sequer afetada pela crise financeira internacional. No entanto, mantinham-se importantes desigualdades regionais: a taxa de formalidade se aproximava aos 70,0% entre a população trabalhadora de São Paulo (69,1%), Distrito Federal (69,0%) e Santa Catarina (68,8%), mas era de apenas 25,9% no Piauí e de 29,9% no Maranhão.

A Taxa de Formalidade entre as mulheres (50,7%) era inferior  à observada entre os homens  (57,0%). E mesmo diante da expressiva evolução de 39,6% para 46,8% entre 2004 e 2009 – que contribuiu para a redução da desigualdade por cor ou raça - a taxa correspondente aos trabalhadores negros (46,8%) ainda era muito inferior à dos trabalhadores brancos (61,9%). Entre as mulheres negras, a taxa era de apenas 42,5%, ou seja, quase 20 pontos percentuais inferior à dos homens brancos.

Diminui  o emprego formal entre as pessoas com deficiência
O número de vínculos empregatícios de pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho diminuiu 12,3% entre 2007 e 2010 (de 348 mil para 306 mil). Nesse mesmo período, o número total de empregos formais aumentou em 17,3%. Em função dessas tendências opostas, a já ínfima participação de pessoas com deficiência no total do emprego formal diminuiu de 0,9% para 0,7% no período. – Entre as unidades federativas, essa participação variava de 0,4% no Acre, Rondônia e Roraima até o máximo de 0,9% no Distrito Federal, Maranhão e Pernambuco.

A importância dos rendimentos oriundos do trabalho na renda familiar
No Brasil, segundo os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009 do IBGE, cerca de 61,0% da renda familiar é proveniente do trabalho. Isso significa que grande parte dos rendimentos familiares e, por conseguinte, das condições de vida das pessoas, depende primordialmente dos rendimentos gerados no mercado de trabalho.

Os rendimentos do trabalho mantiveram a trajetória de crescimento e reduziram-se as disparidades de gênero e raça
O rendimento médio real dos trabalhadores cresceu continuamente, passando de R$ 896 para R$ 1.071 entre 2004 e 2009, o que perfaz um aumento real de 19,5% em apenas cinco anos, não obstante a forte desaceleração econômica ocorrida em 2009, fruto da crise internacional. O aumento da remuneração laboral foi decorrente, sobretudo, dos seguintes fatores: a política de valorização do salário mínimo (entre abril de 2003 e janeiro de 2010, o aumento real acumulado do salário mínimo foi de 53,7%); a intensificação do processo de formalização das relações de trabalho, abrindo a oportunidade para uma parcela dos trabalhadores transitarem para uma inserção ocupacional protegida e de rendimentos mais elevados; o expressivo crescimento do percentual de acordos e negociações coletivas que estipulavam um reajuste real dos salários, no caso das categorias mais organizadas dos trabalhadores.

Entre 2004 e 2009, o aumento do rendimento médio das mulheres (21,6%) foi superior ao dos homens (19,4%). Em consequência, o percentual do rendimento recebido pelas mulheres em relação ao auferido pelos homens aumentou de 69,4% para 70,7%.    Também diminuiu, e em forma mais expressiva, o diferencial de renda entre trabalhadores brancos e negros: enquanto, em 2004, os negros recebiam cerca de 53,0% do rendimento dos brancos, em 2009 essa relação era de aproximadamente 58,0%. Isso se explica porque o rendimento médio real dos negros cresceu 29,8% no período (de R$ 607 para R$ 788), enquanto o dos brancos aumentou 18,3% (de R$ 1.143 para R$ 1.352). A redução dos diferenciais de rendimento, tanto em termos de sexo quanto de cor ou raça, foi bastante condicionada pelo processo de valorização real do salário mínimo, que aumenta mais expressivamente os rendimentos na base da pirâmide, na qual estão sobrerrepresentados as mulheres e os negros.

Diminui o trabalho infantil, mas sua incidência ainda é elevada em algumas unidades federativas
O número de crianças e adolescentes ocupados entre 5 e 17 anos de idade reduziu-se em 1,05 milhão entre 2004 e 2009, passando de 5,3 milhões para 4,2 milhões; em termos percentuais, a incidência do trabalho infantil e adolescente nesse grupo etário reduziu-se de 11,8% para 9,8%, passando a situar-se abaixo de dois dígitos a partir de 2009.

O trabalho infantil diminuiu em todos os grupos etários. Na faixa de 5 a 9 anos, a proporção de crianças ocupadas diminuiu de 1,4% para 0,8%.  Apesar desse declínio, um contingente de 123 mil meninos e meninas ainda estava trabalhando no ano de 2009. A região Nordeste abrigava 46,3% desse contingente (o correspondente a 57 mil crianças), seguida pelas regiões Sudeste (24 mil ou 19,5% do total) e Norte (20 mil ou 16,2% do total). Vale ressaltar que em algumas UFs, o trabalho infantil nessa faixa etária, era tão reduzido, que nem sequer apresentava significância amostral:   Roraima, Pará, Maranhão, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso desde 2004, e São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Sergipe e Tocantins desde 2009. Em se mantendo esta tendência de insignificância estatística até 2015, essa situação seria uma evidência da existência de importantes zonas livres de trabalho infantil nessa faixa etária, desde que se intensifiquem em oferta e qualidade as políticas públicas destinadas à proteção integral e à geração de oportunidades de trabalho decente para homens e mulheres, aliadas à oferta adequada de serviços e equipamentos que facilitem a conciliação entre o trabalho e as responsabilidades familiares.

A proporção de crianças de 10 a 13 anos que trabalhavam reduziu-se de 8,4% para 5,7% no mesmo  período. Na área rural, a redução foi extremamente significativa (quase de dez pontos percentuais) ao passar de 25,1% para 15,6%. Na área urbana, onde a incidência do trabalho nessa faixa etária é bem menor, também se registra um declínio, 4,2% para 3,4%.
Em 2009, o nível de ocupação das crianças e adolescentes de 10 a 17 anos de idade ainda era bastante elevado no Tocantins (24,2%), Rondônia (22,0%), Piauí (21,8%), Santa Catarina (21,6%) e Bahia (20,1%), situando-se inclusive bastante acima da média nacional (14,8%). No Piauí, também era bastante significativo o diferencial de incidência de trabalho infantil entre brancos (16,5%) e negros (23,4%).

Trabalho em condições análogas à escravidão
Entre 2008 e 2011, 13.841 trabalhadores foram resgatados de situações de trabalho análogo ao de escravo pelo Grupo Especial Móvel de Fiscalização. A região Centro-Oeste respondia pelo maior número de pessoas libertadas (3.592) nesse período (260% do total nacional). Quatro estados concentravam quase a metade (6.454 ou 46,6%) do total de pessoas libertadas: Pará (1.929 ou 13,9%), Goiás (1.848, ou 13,4%), Minas Gerais (1.578, ou 11,4%) e Mato Grosso (1.099, ou 7,9%).  Segundo os dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE, em 2009, um contingente de 897 municípios brasileiros (16,1% do total) possuía políticas ou ações de combate ao trabalho forçado. A existência desse tipo de política ou ação era significativamente mais frequente entre os municípios das regiões Nordeste (24,7% do total) e Norte (21,6%) comparativamente às demais regiões: Sudeste (9,4%), Sul (10,4%) e Centro-Oeste (16,3%).

Apenas 1,6% dos adolescentes de 14 e 15 anos de idade que estavam trabalhando o faziam em situação de aprendizagem
Em 2009, 1,15 milhão de adolescentes de 14 e 15 anos de idade estava trabalhando no país, o que correspondia a 16,1% do total de pessoas nessa faixa etária. Destes, apenas 18,6 mil (ou 1,6% do total) era contratado como aprendiz de acordo com a Lei de Aprendizagem. Tal percentual era ainda menor nas regiões Nordeste (0,3%) e Norte (0,7%), exatamente naquelas em que se observavam elevadas proporções de crianças e adolescentes ocupados nessa faixa etária: 20,4% e 17,4%, respectivamente. Tocantins, Ceará e Bahia, estados nos quais a proporção de adolescentes de 14 e 15 anos trabalhando era superior à média nacional (28,3%, 24,0% e 23,4%, respectivamente), figuravam entre aqueles com menores percentuais de aprendizes nessa faixa etária:  0,2%, 0,1% e 0,2%, respectivamente.

O desafio de erradicar o trabalho infantil doméstico
Apesar de proibido no Brasil para menores de 18 anos desde 2008, o trabalho doméstico ainda é uma realidade na vida de crianças e adolescentes brasileiras/os. Em 2009, 363 mil meninos e meninas entre 10 e 17 anos encontravam-se nessa situação. Destes, 340 mil (93,6%) eram meninas e 233 mil (64,2%), meninas negras. Cinco estados respondiam pela metade do contingente de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil doméstico: Minas Gerais (53 mil ou 14,8% do total), São Paulo (39 mil ou 10,7%), Bahia (37 mil ou 10,2%), Ceará (27 mil ou 7,5%) e Paraná (21 mil ou 5,8% do total).

A taxa de desemprego juvenil continua elevada
Seguindo uma tendência mundial, em 2009 a taxa de desemprego entre os jovens (15 a 24 anos de idade) era de 17,8%, sendo mais do que duas vezes superior à  taxa total de desemprego (8,4%). A taxa de desemprego das mulheres jovens (23,1%) era bastante superior à dos homens jovens (13,9%). Os níveis de desocupação dos/as jovens negros/as (18,8%) também eram mais elevados que o dos/as brancos/as (16,6%).  A desigualdade era ainda mais expressiva entre as jovens negras, cuja taxa de desocupação (25,3%) chegava a ser 12,2 pontos percentuais superior a dos jovens brancos do sexo masculino (13,1%).

O desemprego juvenil apresentava grande variabilidade ao longo do território nacional. As taxas variavam desde 9,8% no Piauí até 27,0% no Amapá, isto é, quase o triplo entre os extremos. Entre as mulheres jovens as maiores taxas se registravam no Amapá (34,9%) e Sergipe (29,8%).

O percentual de jovens que não estudam e nem estão ocupados no mercado de trabalho era elevado e variava significativamente por sexo e cor ou raça
Em 2009, um expressivo contingente de 6,2 milhões de jovens (18,4% do total) não estudava nem trabalhava. A análise deste indicador segundo uma perspectiva de gênero revela que a proporção de mulheres adolescentes e jovens que não estudavam nem trabalhavam (24,8%) era o dobro da proporção de homens na mesma situação (12,1%). A porcentagem era ainda mais elevada entre a juventude negra (20,4%) em comparação com a branca (16,1%), sendo que alcançava 28,2% entre as jovens negras, o que significa que aproximadamente uma entre cada três jovens mulheres negras se encontrava nessa situação.

Em três estados a proporção de jovens que não estudavam nem trabalhavam situava-se em torno de 25,0%: Pernambuco (25,7%), Alagoas (25,0%) e Amapá (24,6%). As menores proporções eram observadas em Santa Catarina (11,0%) e Piauí (14,0%).

Aumenta a proporção de trabalhadores que contribuem para a previdência social
No Brasil, a segunda metade da década de 2000 foi marcada por uma significativa expansão da proporção de trabalhadores e trabalhadoras ocupados/as que contribuem para a previdência social, sendo que, pela primeira vez, mais da metade da dos/as ocupados/as de 16 anos ou mais de idade passou a dispor da cobertura previdenciária. Essa proporção aumentou de 47,6% para 54,4% entre 2004 e 2009, perfazendo uma expansão de cerca de sete pontos percentuais em apenas cinco anos. Tal expansão esteve predominantemente associada ao crescimento do emprego formal e, em segundo lugar, às diversas iniciativas de estímulo à formalização das relações de trabalho.

A importância das transferências de renda no combate à pobreza
As rendas provenientes do recebimento de benefícios previdenciários e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) retiravam da pobreza um contingente de 23,1 milhões de pessoas no Brasil em 2009, o que equivale a uma redução de 12,5 pontos percentuais (p.p.) na proporção de pessoas nessa situação. Em um conjunto de dez UFs essa redução era superior à média nacional, destacando-se Piauí (17,3 p.p.), Paraíba (15,4 p.p.) e Ceará (14,8 p.p.).

Diminui o percentual de trabalhadores pobres no país 
Entre 2004 e 2009, reduziu-se de 7,6% para 6,6% a proporção de trabalhadores pobres no país, ou seja, pessoas ocupadas que viviam em domicílios com rendimento domiciliar per capita mensal de até 1/4 do salário mínimo. A redução foi de 0,9 ponto percentual tanto entre os homens (de 7,9% para 7,0%) quanto entre as mulheres (de 7,1% para 6,2%). Tratando-se do atributo cor ou raça, o declínio da proporção de trabalhadores pobres foi maior entre a população ocupada negra (2,0 pontos percentuais) do que entre a branca (0,4 ponto percentual). Entretanto, em 2009, o percentual de trabalhadores pobres negros (9,8%) era quase que três vezes superior em comparação aos brancos (3,4%).

A redução da pobreza entre os trabalhadores e trabalhadoras esteve diretamente associada ao aumento real dos rendimentos do trabalho, sobretudo do salário mínimo, à ampliação da cobertura dos programas de transferência de renda e de previdência e assistência social – que contribuíram para o aumento do rendimento domiciliar – e ao  pelo incremento da ocupação, principalmente do emprego formal.

A situação das trabalhadoras domésticas: um dos núcleos duros do déficit de Trabalho Decente
Apesar da expansão observada durante a segunda metade da década de 2000, a proporção de trabalhadoras domésticas com carteira de trabalha assinada era de apenas 28,6% no ano de 2009. Em nenhuma das 27 Unidades da Federação, o percentual de trabalhadoras domésticas com carteira assinada alcançava 40,0%, sendo que as maiores porcentagens eram observadas em São Paulo (38,9%), Santa Catarina (37,6%) e Distrito Federal (37,0%). Por sua vez, em quatro UFs, esse percentual era inferior a 10,0%: Amazonas (8,5%), Ceará (9,3%), Piauí (9,7%) e Maranhão (6,7%). Vale enfatizar que entre as trabalhadoras domésticas negras essa proporção era ainda menor, chegando a apenas 6,3% no caso do Maranhão. 

Diminuem o número de acidentes e de óbitos por acidentes de trabalho, mas a incidência segue elevada em algumas unidades federativas
O número de acidentes de trabalho registrados no país declinou de 756 mil em 2008 para 701 mil em 2010, o que significou uma redução de 7,2% em dois anos. Essa trajetória, assim como a intensidade dos acidentes do trabalho varia significativamente entre as Unidades da Federação. Em 17 das 27 UFs, diminui o número de acidentes de trabalho registrados entre 2008 e 2010, acompanhando a tendência nacional. Em decorrência da redução do número de acidentes de trabalho, a Taxa de Incidência de Acidentes do Trabalho, que era de aproximadamente 23,0 por mil vínculos empregatícios em 2008, declinou para 21,6 em 2009 e para 19,1 em 2010. Apesar da redução observada na maioria das UFs, a Taxa de Incidência de Acidentes do Trabalho ainda apresentava uma expressiva variabilidade em 2010, sendo ainda era bastante elevada em algumas UFs. A taxa mais alta do país foi registrada em Alagoas (30,2 para cada mil vínculos), sendo também significativamente elevada em Santa Catarina (26,3) e no Rio Grande do Sul (24,6). As menores taxas de incidência em 2010 eram verificadas em Roraima (9,3 por mil vínculos), Amapá (9,7), Tocantins (10,0) e Sergipe (10,9).

Também se observou uma redução de 3,7% dos óbitos decorrentes de acidentes de trabalho entre 2008 e 2010 (de 2.817 para 2.712). A Taxa de Mortalidade por acidentes do trabalho declinou em 21 das 27 UFs, tendo aumentado em Goiás, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí. Mato Grosso, em que pese a contundente redução na taxa (de 25,2 para 17,7 óbitos por 100 mil vínculos) observada entre 2008 e 2010, apresentava a maior incidência do país de óbitos decorrentes de acidentes do trabalho. O Rio Grande do Norte (3,4), Distrito Federal e Rio de Janeiro (todos com uma taxa de 4,6 óbitos por 100 mil vínculos) apresentavam as menores taxas de mortalidade por acidentes.

Aumenta a média de anos de estudo dos trabalhadores e trabalhadoras
Entre 2004 e 2009, cresceu de 7,3 para 8,2 anos a média de anos de estudo da população ocupada. Entretanto, apenas no Distrito Federal essa média (10,3 anos) ultrapassava o patamar 10 anos. Em 15 das 27 unidades federativas, essa cifra nem sequer alcançava os oito anos de estudo, que corresponde ao ensino fundamental completo.

A grande maioria dos novos empregos formais demanda pelo menos o ensino médio completo
Cerca de 90,0% dos novos empregos formais recentemente surgidos no país demandam pelo menos o ensino médio completo, enquanto que 40,0% dos trabalhadores que compõem a PEA nacional não possuem sequer ensino fundamental completo e 16,0% enquadravam-se na condição de analfabetos funcionais (tinham menos de quatro anos de estudo).

Educação profissional e diferenciais territoriais e de cor ou raça 
Segundo os dados da pesquisa suplementar da PNAD referentes ao ano de 2007, pouco menos de um quarto da população (22,4%) tinha passado por algum curso de educação profissional. Entre as Unidades da Federação, o percentual de pessoas que estava frequentando ou havia frequentado anteriormente algum curso de educação profissional variava de apenas 9,2% em Alagoas e 13,0% em Pernambuco até 33,7% no Distrito Federal.

Apesar de a proporção de pessoas que frequentavam ou haviam frequentado anteriormente cursos de educação profissional não apresentar significativas diferenças entre homens (22,0%) e mulheres (22,7%), essa diferença era significativa entre brancos (24,8%) e negros (19,8%) - da ordem de cinco pontos percentuais. Os diferenciais eram ainda mais significativos entre homens brancos (25,2%) e homens negros (18,9%), sendo também expressivo entre mulheres brancas (24,4%) e mulheres negras (20,7%), revelando a incidência da desigualdade racial no acesso à educação profissional.

Os estereótipos de gênero predominam nos cursos de qualificação profissional
A análise da distribuição por sexo das pessoas que frequentavam ou frequentaram curso de qualificação profissional, segundo a área profissional do curso, é reveladora de estereótipos de gênero ainda vigentes na formação profissional e no mercado de trabalho. Entre as pessoas que frequentavam ou haviam frequentado curso na área da construção civil, 93,8% eram do sexo masculino e apenas 6,2% do sexo feminino. Na área da indústria e manutenção também se observava uma presença esmagadora dos homens (83,2%) em relação às mulheres (16,8%). Por outro lado, as mulheres predominavam de maneira bastante expressiva nos cursos considerados como “tipicamente femininos”: 91,0% em estética e imagem pessoal e 76,6% na área da saúde e bem estar social.

As barreiras ainda vigentes na intermediação da mão de obra
Em 2010, 44,7% das vagas  oferecidas pelo Sistema Nacional de Emprego (SINE)  tinha como requisito o sexo masculino e 11,1% o sexo feminino; para 44,3% das vagas oferecidas não se fazia distinção de sexo, ou seja, elas  poderiam ser preenchidas indistintamente por homens ou mulheres. Considerando-se que os trabalhadores de cada sexo podem concorrer aos postos de trabalho cujo requisito é o seu próprio sexo ou àqueles nos quais esse requisito é indiferente (ou seja, que não exigem requisitos relacionados a esse atributo), constata-se que, enquanto os homens poderiam concorrer a 89,0% das vagas ofertadas, as mulheres poderiam disputar apenas 55,4% delas.

O conjunto dessas barreiras impostas pela exigência de requisito por sexo cria inúmeros obstáculos para que as mulheres possam ser encaminhadas para participar dos processos seletivos e, consequentemente, obter uma colocação no mercado de trabalho por intermédio do SINE. As informações de intermediação de mão de obra do SINE evidenciam o descompasso existente na participação percentual das mulheres entre as pessoas inscritas e colocadas (que conseguiram emprego). Nos anos de 2007 e 2010, as mulheres inscritas no SINE respondiam por praticamente a metade do número total (cerca de 46,7%) de inscritos. Entretanto, a participação percentual feminina entre o total de pessoas colocadas era bastante inferior – 36,2% em 2007 e 39,6% em 2010.

A dupla jornada feminina e as responsabilidades familiares
Ao conjugarem-se as informações relativas às horas de trabalho dedicadas às tarefas domésticas e de cuidado com aquelas referentes à jornada exercida no mercado de trabalho, constata-se que, apesar da jornada semanal média das mulheres no mercado de trabalho ser inferior a dos homens (36,0 contra 43,4 horas), ao computar-se o tempo de trabalho dedicado aos afazeres domésticos (22,0 horas para elas e 9,5 para eles), a jornada média semanal total feminina alcançava 58,0 horas e ultrapassava em 5,0 horas a masculina (52,9 horas).

Trabalhadoras com filhos e acesso à creche
No ano de 2009, 11,5% das mulheres ocupadas de 16 anos ou mais de idade tinham filhas e filhos de 0 a 3 anos de idade,  sendo que uma significativa proporção de 73,3% dessas crianças não frequentava creche. No Acre e no Amapá, que apresentavam os maiores percentuais de ocupadas com filhos menores – 20,0% e 16,4%, respectivamente – eram mais elevadas as proporções de filhos menores que não frequentavam creche (90,3% no Acre e 90,0% no Amapá).

Trabalhadoras que tiveram filhos e licença-maternidade
No levantamento domiciliar de 2008, a PNAD investigou a ocorrência de filho nascido vivo durante o ano de referência da pesquisa. Com base nessa informação, constatava-se que 2,7% das trabalhadoras ocupadas tiveram filho. Entre as mães trabalhadoras que tiveram filhos, apenas a metade (50,5%) contribuía para a Previdência Social. Isso significa que metade das mães trabalhadoras não contribuía e, por conseguinte, não podia desfrutar da licença-maternidade.

Associada às desigualdades regionais e à precariedade dos mercados de trabalho locais, em diversas UFs a proporção de mães trabalhadoras que tiveram filho e que não contribuíam para a Previdência Social assumia proporções significativas: Piauí (81,5%), Espírito Santo (76,9%), Acre (76,3%), Bahia (70,6%) e Alagoas (70,4%). Os menores percentuais de mães trabalhadoras que não contribuíam eram observados no Rio de Janeiro (25,9%) e Distrito Federal (28,3%) – e ainda assim equivaliam a quase 1/3 do total das mães trabalhadoras.

O Estado do Piauí apresenta a maior taxa de trabalhadores e trabalhadoras sindicalizados/as
A Taxa de Sindicalização apresentou relativa estabilidade no período analisado. Em 2009, girava em torno de 16,0%, sendo que a dos homens (19,1%) era maior que a das mulheres (16,9%), a dos trabalhadores brancos (19,6%) maior que a dos negros (16,7%) e dos residentes na zona rural (24,7%) maior que a dos trabalhadores urbanos (14,6%). Em2009, o Piauí era o Estado que apresentava a maior taxa de sindicalização do país (27,9%).

Aumenta significativamente a proporções de negociações coletivas que asseguraram aumentos reais de salário
Uma parcela bastante expressiva das negociações coletivas no Brasil obtiveram reajustes reais de salário entre 2004 e 2010, sendo seu ápice alcançado neste último ano, quando quase 89,0% das negociações superaram o INPC. Entre 1996 e 2003, apenas por duas vezes essa proporção superou a casa dos 50,0%. Entre os setores de atividade, constata-se que, em 2010, 95,7% das negociações realizadas no comércio obtiveram reajustes salariais acima da inflação. Na indústria e no setor de serviços, por seu turno, tais percentuais atingiram 90,5% e 82,8%, respectivamente. Em comparação com o ano anterior, todos os setores assinalaram um avanço no número de negociações salariais com reajustes superiores à inflação.

A importância da empresas na geração de emprego
Em 2009, as entidades empresariais ocupavam 70,2% de toda a mão de obra assalariada no país – o correspondente a 28,2 milhões de vínculos empregatícios, e eram responsáveis pelo pagamento de 61,1% de todo o volume de salários e outras remunerações (o equivalente a cerca de R$ 478 bilhões).
As Micro e Pequenas Empresas representavam 99,0% dos estabelecimentos formais no ano de 2010 e respondiam por 51,6% dos empregos privados não agrícolas formais do país e aproximadamente 40,0% da massa salarial. Por sua vez, as Médias e Grandes Empresas, por intermédio de 59,6 mil estabelecimentos, geravam 13,8 milhões de postos de trabalho e respondiam por 48,4% do contingente total de empregos privados não agrícolas formais do país.

A íntegra do estudo será disponibilizada brevemente no site da OIT.