quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Sentido, mistérios e o que se leva


Uma gravura, uma anotação antiga (2007) e um textinho antigão (2004).

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Chuva, de Oswaldo Goeldi


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"A felicidade não tem mistérios. 


As pessoas infelizes são todas parecidas. Uma ferida antiga, um desejo negado, um golpe na vaidade, um lampejo de amor extinto pelo desprezo - ou, pior, pela indiferença - aderem a elas, ou vice-versa, e assim elas vivem todos os dias envoltas num véu de ontens. O homem feliz não olha para trás. Ele não olha para adiante. Ele vive o presente. 



Entretanto, é nisso que reside o problema. Existe algo que o presente jamais pode oferecer: um sentido. Os caminhos da felicidade e do sentido não são os mesmos. Para encontrar a felicidade basta que o homem viva apenas o momento. Mas se deseja encontrar um sentido - um sentido para os seus sonhos, para os seus segredos, para a sua vida -, o homem deve se reinstalar em seu passado, por mais sombrio que seja, e viver para o futuro, por mais que seja incerto. Assim, a natureza acena a todos com a felicidade e o sentido, insistindo apenas para que escolhamos entre eles."
Jed Rubenfeld, in A interpretação do Assassinato


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Sentido? 

Rémy está doente e logo morrerá, sabe-se bem no início de "As Invasões Bárbaras". Não existe nada que alguém possa fazer para impedir; não há cura possível. Só nos resta, assim como aos personagens do filme, esperar pelo inevitável. Não existe a quem odiar ou ao que maldizer por culpado. Sequer sabemos, nós espectadores, que doença levará Rémy para, personificando-a, a ela dirigir a raiva. A morte dele não é planejada por um Sauron malévolo, que com ela se apraz e dela se alimenta. Ela é sim a conseqüência mesmo de se estar vivo e, se faz parte dos planos de alguém, é daquele mesmo que generosamente a vida nos deu.
A consciência de que um dia sua vida chegará ao fim é, obviamente, comum a todos nós, humanos, apesar de nos esforçarmos ao máximo para disso esquecer. Isso não é novidade: todos, salvo casos de grave alienação - como a adolescência, por exemplo - sabemos que ao nascer temos apenas uma certeza inexorável: a de que morreremos. A situação de Rémy, no entanto, é outra. Ele sabe que o fim está próximo, e é já tão certo que nenhuma artimanha ajudará a torná-lo menos presente. No seu caso, não há contra o que lutar ou esperança de uma salvação - que será sempre, claro, uma postergação. 

Sem uma luta ou esperança a que se agarrar, só resta a Rémy, e aos que estão a sua volta, viver cada momento desta espera pelo irremediável, deste apagar-se triste e melancólico, porém calmo, uma vez que certo. Sem expectativa não há lugar para dramalhões rasgados, seja na ficção, seja na vida real.  Se o futuro não reserva mais surpresas que o supram de ansiedade, só resta a Rémy avaliar o passado. E buscar um sentido para sua existência, uma vez que o geométrico, impossível não ver, é sempre a morte: é para ela que a vida, desde o nascimento, aponta. 

É nesta busca do significado para a vida, surgida da constatação de que sem tardar ele deixará mesmo de existir - o que torna o porvir irrelevante, uma vez que ele mesmo já não estará aqui para o testemunhar - que Rémy revê a trajetória de sua geração (a dos célebres jovens da década de sessenta) e a sua própria opção de vida, uma mistura complexa de esquerdismo, intelectualismo e hedonismo sensual. Na história que construiu para si, percebe ele finalmente que, apesar da vida dedicada à universidade, não foi capaz de escrever um livro importante que assinalasse sua existência e que os filhos, cujos caminhos de fato desconhece, trilharam tais sendas sem que delas tenha ele participado da estruturação.

Ainda que, ao final, esta última constatação, sobre sua influência sobre seus filhos, seja posta em dúvida, em determinado momento Rémy lamenta que não tenha, ao menos, aprendido algo, o que traria algum significado para sua vida. Esta estranha asserção, vinda de alguém que então, e, salvo engano, até o fim, se declara ateu, é alinhavada de forma comovente com a seguinte frase: "Sinto que vou embora como nasci: sem nada".

Apesar de confessar um ateísmo menos convicto que o de Rémy, ou, talvez, algo como um pan-sincretismo-brasileiro claudicante, acho que esta constatação final é a que mais temo que se torne realmente a minha, caso um dia me encontre na situação dele. Consciente da finitude da existência, e com ela inconformado, nos meus momentos de dúvidas, bastante comuns, é no aprendizado e aprimoramento pessoal e na vivência do que de belo e prazeroso existe nesta vida que deposito minhas esperanças de que haja um sentido para o tempo que passamos sobre esta pedrinha solta no infinito. Sinto um medo torturante de, chegada a minha hora, perceber-me exatamente igual a como nasci: sem nada. Mas será que é realmente possível fugir disto?

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