segunda-feira, 5 de setembro de 2011

UNESCO: a lei brasileira não protege a liberdade de expressão contra a concentração dos negócios da área de mídia.


A UNESCO está incumbida pelo Sistema das Nações Unidas de agir pela garantia da liberdade de expressão. Nesta função, recentemente, ela publicou estudos elaborados por consultores internacionais visando contribuir para a discussão acerca da regulamentação da radiodifusão no Brasil.

As íntegras dos três estudos estão disponíveis em links neste endereço: Publications analyze media regulation and freedom of expression in Brazil. São eles: O Ambiente regulatório para a radiodifusãoLiberdade de expressão e regulacão da radiodifusão; e A Importância da autorregulação da mídia para a defesa da liberdade de expressão.

Transcrevo abaixo, com grifos meus, parte do texto de apresentação dos estudos, seguido do subcapítulo do primeiro deles referente à regulamentação da propriedade dos meios de comunicação.

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(Trechos do estudo “O ambiente regulatório para a radiodifusão: uma pesquisa de melhores práticas para os atores-chave brasileiros”, de Toby Mendel e Eve Salomon)

APRESENTAÇÃO

O direito de se expressar livremente é um fator importante de desenvolvimento do indivíduo, como ser humano e como “animal político”, e de aperfeiçoamento e radicalização das democracias.

A invenção da imprensa constituiu um divisor de águas para os debates sobre a liberdade de expressão. Não bastava mais garantir o direito de cada indivíduo de procurar, difundir ou receber informações, livremente, na interação com os demais indivíduos. Era preciso ir além, garantindo esse direito na relação com um intermediário que potencializava radicalmente o alcance das opiniões, informações e ideias: os meios de comunicação de massa.

Nesse contexto, muitos dos marcos fundadores do debate contemporâneo sobre direitos humanos (as Revoluções Gloriosa, Americana e Francesa; os escritos de John Milton, Alexis de Tocqueville e John Stuart Mill, dentre outros) dedicaram relevante atenção ao tema da liberdade de expressão e de sua relação com os meios de comunicação de massa.

A ideia de uma mídia livre, independente, plural e diversificada passa a se fixar como o ideal a ser alcançado para que o direito à liberdade de buscar, difundir e receber informações possa ser realizado em sua plenitude. Encontrar o formato adequado da participação do Estado Nacional na equação que busca fomentar sistemas midiáticos com essas características, rapidamente, configura-se em uma das peças mais relevantes desse quebra-cabeças.

Tal desafio se torna especialmente complexo quando, já no século XX, a radiodifusão assume papel de protagonista nesse sistema. A possibilidade hipotética de que cada interesse legítimo dos variados grupos sociais poderia se fazer ouvir pelo seu próprio jornal não se verifica para os casos da televisão e do rádio. O espectro eletromagnético é um recurso público finito e precisa ser regulado, pelo menos no que se refere à distribuição das frequências.

A regulação da mídia caminha, portanto, pari passu com a garantia, promoção e proteção da liberdade de expressão. Na verdade, regular a mídia deve sempre ter como objetivo último proteger e aprofundar aquele direito fundamental.

Não por outra razão, a matéria é tratada, a partir de diferentes perspectivas, pelos mais importantes instrumentos internacionais de direitos humanos: Carta das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Convenções sobre os Direitos da Criança, sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O mesmo vale para instrumentos regionais de direitos humanos e para os ordenamentos jurídicos das mais consolidadas e longevas democracias do planeta.

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A nosso convite [da UNESCO], os consultores internacionais da UNESCO Toby Mendel e Eve Salomon, os quais, juntos, já trabalharam em mais de 60 países com questões semelhantes, assinam dois textos:

O Ambiente Regulatório para a Radiodifusão: uma Pesquisa de Melhores Práticas para os Atores-Chave Brasileiros. Material que apresenta como a regulação de mídia é tratada no cenário internacional e em 10 democracias (África do Sul, Alemanha, Canadá, Chile, França, Estados Unidos, Jamaica, Malásia, Reino Unido e Tailândia) comparativamente ao status quo brasileiro. Os autores abordam o tema, tecendo recomendações para o Brasil, a partir dos seguintes eixos centrais: Autoridades Reguladoras Independentes, Concessões, Regulação e Autorregulação de Conteúdo, Emissoras Públicas, Emissoras Comunitárias, Regulação de Propriedade.

Liberdade de Expressão e Regulação da Radiodifusão. Texto que busca sublinhar que a lógica central da política regulatória deve ser exatamente fortalecer a liberdade de expressão. Este é o texto que o caro leitor ou leitora tem em mãos.

Adicionalmente, o também consultor internacional da UNESCO Andrew Puddephatt, teceu uma discussão sobre A importância da autorregulação da mídia para a defesa da liberdade de expressão.

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REGRAS DE PROPRIEDADE

A concentração da propriedade de emissoras, a concentração dos negócios de radiodifusão e mídia impressa por meio de empresas verticalmente integradas e, de modo geral, a pequena diversidade no controle das empresas concessionárias de radiodifusão podem trazer vários problemas, sob a perspectiva da liberdade de expressão. O mais óbvio é o risco de tais concentrações dificultarem a promoção da diversidade de vozes na mídia, um valor-chave da liberdade de expressão. Isso pode acontecer de várias formas. Diferentes veículos pertencentes ao mesmo grupo podem ficar tentados a fazer consórcios de programação, por exemplo, para reduzir seus custos de produção. Isso significa que os telespectadores e ouvintes vão ter os mesmos programas em diferentes estações. Essa prática é prejudicial, principalmente quando envolve diferentes emissoras locais. A formação de consórcios de noticiários, por exemplo, pode resultar em menos noticiários locais que têm produção relativamente cara.

A concentração de propriedade também pode levar a uma baixa diversidade, ou mesmo a visões uniformes sobre determinadas questões, especialmente quando os grupos de emissoras respondem a um comando editorial central ou quando os próprios donos impõem controle sobre o conteúdo. Este pode ser um grave problema quando há vínculo com partidos políticos: se o proprietário de um grupo que concentra a maior audiência apoia um determinado partido ou líder político, pode provocar um desequilíbrio no cenário eleitoral. Também pode ser problemático quando um grupo de mídia dominante assume uma forte postura sobre alguma questão de debate público na qual tenha interesse. Essas situações suscitam tentativas de elaboração de regras para, inclusive, limitar a concentração de propriedade de empresas de comunicação.

Podemos observar que a concorrência no setor de mídia é diferente da concorrência em muitos outros setores da atividade econômica. Na maioria dos mercados, bastam dois ou três atores competitivos para garantir variedade de opções e preços justos; já no setor de mídia, é recomendável ter muito mais atores que negociem na bolsa de ideias, de acordo com suas possibilidades financeiras. Consequentemente, muitos países implantaram regimes especiais para regular a concentração de propriedade da mídia, além de regras gerais para impedir monopólio (ou medidas antitruste).

Diversos mecanismos podem ser implantados para garantir a devida aplicação das regras anticoncentração. Por exemplo, pode ser exigido das empresas de mídia que informem à autoridade reguladora qualquer operação que as associe com outras empresas do setor. Mesmo uma autorização prévia do regulador pode ser exigida nesses casos. Também podem ser estabelecidas regras especiais sobre a transparência da propriedade, mais severas do que as geralmente aplicadas a outros tipos de empresas. O órgão regulador também pode incluir no processo de licenciamento uma análise do impacto potencial de determinadas concessões sobre a concentração de propriedade da mídia.

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A SITUAÇÃO NO BRASIL

O Artigo 12 do Decreto nº 236 de 1967 estabelece limites sobre a propriedade de serviços abertos (não codificados) de TV e rádio. Nenhuma “entidade” pode deter mais do que 10% das licenças nacionais de televisão (e, dentre essas, somente cinco podem ser VHF) ou mais de duas licenças de TV por estado. No caso da rádio, os limites são: para emissoras FM, no máximo seis licenças; para ondas médias, até quatro licenças locais, três regionais e duas nacionais; para ondas curtas, no máximo três licenças regionais (até duas por estado) e duas nacionais. Essas regras não se aplicam a estações repetidoras.

Apesar de o Decreto nº 236 se referir a “entidades”, o Decreto nº 52.795 de 1963 deixa claro que esses limites se aplicam a acionistas individuais. Mas as regras não se aplicam a formas de controle indireto ou de facto, como ocorre, por exemplo, por meio de relações pessoais envolvendo proprietários de emissoras. Em diversos países, as restrições relativas à propriedade costumam se concentrar no controle de facto, já que é o controle efetivo que importa. Não há no Brasil restrição à propriedade simultânea de várias mídias, a chamada propriedade cruzada. Também não há atualmente regras que limitem a propriedade simultânea dos serviços de televisão paga e rádio. O Projeto de Lei 29 pretende introduzir limites à propriedade cruzada no setor de TV paga, separando empresas de produção de conteúdo das empresas de distribuição de conteúdo, principalmente para evitar práticas abusivas.

O Artigo 222 da Constituição Federal limita a participação de estrangeiros na propriedade de jornais e radiodifusoras ao máximo de 30% do capital votante, sendo que os 70% restantes podem ser de brasileiros natos ou pessoas naturalizadas brasileiras há pelo menos dez anos.

Essas regras não oferecem proteção suficiente contra o surgimento de conglomerados concentradores de mídia. Em primeiro lugar, porque elas não se aplicam diretamente ao controle de facto, então é possível estender o controle de várias formas indiretas; em segundo lugar, porque elas são mais permissivas do que as adotadas em outros países, especialmente devido à falta de qualquer regra sobre propriedade cruzada; em terceiro lugar, porque emissoras estendem suas próprias redes por meio de relações com afiliadas, fato que pode facilmente ser percebido devido à grande proporção de programação centralizada.

Ao mesmo tempo, acreditamos que é importante para o Brasil ter redes nacionais de radiodifusão, especialmente num cenário em que a radiodifusão pública tem posição fraca. Essas redes nacionais são valiosas para desenvolver e manter um senso de cultura e unidade nacionais, assegurando uma ampla disponibilidade de noticiários de alta qualidade, contribuindo para a boa informação do público e para o debate nacional.

A transmissão digital já está instalada em várias cidades brasileiras e, ao que parece, já foram concluídos alguns acordos sobre o uso de recursos digitais, sobre os quais não obtivemos detalhes. Como é bem sabido, o Brasil adaptou a tecnologia digital japonesa, ISDB-T, seguido de muitos outros países, principalmente na América Latina.

A despeito desses importantes avanços, o Brasil não tem nenhum prazo formal estabelecido com a UIT para concluir a transição para a televisão digital, apesar de o Decreto nº 5.820 de 2006 estabelecer a data de 30 de junho de 2016. Além disso, houve poucas consultas públicas para tratar dessa transição.

A passagem para a tecnologia digital libera espaço de transmissão, já que mais canais podem operar na mesma quantidade de frequências. A possibilidade de ampliar a difusão de conteúdos permite promover a diversidade, além de aumentar o acesso. Representantes do Ministério das Comunicações nos informaram que seriam alocados à EBC canais multiplex – quatro nas principais cidades e três em cidades menores – para oferecer canais ao Congresso Nacional e a órgãos do Poder Executivo, cobrindo temas como educação, cultura e cidadania (este último administrado pelo Ministério das Comunicações). Não está claro o modo pelo qual essas decisões foram tomadas e nem foram esclarecidos os motivos para que diferentes braços do governo tenham seus próprios canais. De qualquer forma, a questão sobre o que fazer com os dividendos da tecnologia digital deve ser objeto de cuidadoso planejamento e de um debate aberto.

RECOMENDAÇÕES

Deveriam ser estabelecidas regras mais sólidas sobre a concentração de propriedade, inclusive de propriedade cruzada. Estas precisam se concentrar no controle de facto exercido pelos indivíduos, e não na composição corporativa das emissoras. No entanto, deve-se levar em consideração a necessidade de o Brasil contar com redes nacionais de radiodifusão.

A responsabilidade pelo monitoramento e pela aplicação das regras de propriedade deve ser do Cade, com apoio de uma nova autoridade reguladora independente, quando e se esta for criada. O Cade deve ter recursos suficientes e desenvolver a expertise necessária para assumir esse papel.

É necessário buscar uma abordagem mais participativa no processo de transição para a tecnologia digital, para assegurar que sejam considerados os importantes interesses públicos.

Pelo menos parte dos dividendos da tecnologia digital deveria ser alocada a usos de radiodifusão, e deve ser promovido um processo aberto e participativo para decidir como usar esse espectro adicional.

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Leia também: OI: Liberdade, a farsa e a tragédia – o direito à comunicação, por Konder Comparato, prefácio de Fábio Konder Comparato ao livro Liberdade de expressão vs. liberdade de imprensa – Direito à comunicação e democracia, de Venício A. de Lima.

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