Ballerina, de Jan Saudek. |
Paulo Moreira Leite
Mede-se o grau de desenvolvimento político de um país pela transparencia de suas disputas cotidianas. Neste sentido o universo político americano é mais avançado do que o brasileiro.
Um bom exemplo é o Tea Party. Trata-se de um grupo de extrema direita fanatizado, que tem um respeito absoluto e reverente pelo mercado.
Diz acreditar que o indivíduo é a principal alavanca do progresso humano. Condena o Estado acima de quase todas as coisas — menos para realizar guerras de conquista. Afirma, querendo ser levado a serio, que toda medida destinada a criar um regime de bem-estar social não passa de um esforço na direção de uma ditadura comunista.
É ridículo, como cultura política, e regressivo, como fenômeno histórico. A crise economica dos EUA, grande parte provocada por essas idéias, é uma demonstração do caráter nocivo deste condomínio conservador. Mas é mais honesto do que ocorre no Brasil.
Nosso Tea Party é difuso, anti-social e não se apresenta como tal. Esconde sua visão de mundo atrás da bandeiras extremistas, que fingem não ser de direita nem esquerda.
Está presente nos partidos políticos, mas também em artigos da mídia e em gabinetes de alto poder econômico e decisiva influencia política.
Seu discurso considera o Estado é uma entidade mal-assombrada que só deveria existir para perseguir os desajustados e os inconformados. Combate toda idéia que poderia levar a uma melhoria na proteção social e denuncia qualquer esforço para diminuir a concentração de renda.
Agindo num país muito mais pobre e desigual do que o original americano, nosso Tea Party faz uma tradução adaptada e empobrecida da mesma retórica. Procura se esconder atrás de causas universais para esconder que se move em nome de interesses bem particulares.
Nessa versão tropicalizada, alega que tudo o que sobrevive às voltas do Estado não é embrião de comunismo mas fruto de um roubo. Como os originais americanos, nosso Tea Party adora o setor financeiro. Seus integrantes falam como se fossem anarquistas de direita mas, num tributo (sem ofensa) às mazelas nacionais, seus verdadeiros líderes e inspiradores tiveram vários flertes e até muito mais do que isso nos tempos da ditadura militar.
Em matéria de liberdades públicas, nosso Tea Party confunde liberdade de expressão com direito de venda. É contra todo e qualquer protecionismo, a menos que se destine a proteger seu mercado.
Mas alimenta uma doutrina contra uma intervenção dos poderes públicos, mesmo que patrocinada por autoridades escolhidas pelo voto popular, para modificar a distribuição de renda e assegurar benefícios aos brasileiros que não tem renda para adquiri-los. Acham que combater a desigualdade social é ir contra a natureza humana.
Por coerencia, nosso Tea Party é contra um regime de saúde pública, que considera errado num país grande e baixa renda per capta como o nosso. Os sistemas públicos tendem a nivelar as pessoas e, de seu ponto de vista, isso é ruim.
Os mais atirados dizem que o SUS é uma utopia socialista, inviável em função de nossa renda per capta — seguindo um raciocínio que leva a crença de que o salve-se quem puder deveria virar artigo da próxima Constituição.
Os mais preparados preferem a linha policial. Alegam que todo aumento de gasto nessa área será desviado e roubado. É irracional e irreal mas funciona. Um número impressionante de brasileiros acredita nisso sem fazer contas simples.
É difícil saber quem rouba de quem quando se constata que nossa saúde privada consome 55% de todos os gastos com saúde do país mas só atende 25% da população. É um imenso e escandaloso programa de transferência de renda ao contrário. Todo dinheiro gasto com saúde pelo cidadão comum pode ser descontado do imposto de renda, privando o Estado de recursos que seriam úteis para a educação, para as obras públicas e até para a saúde. Mas estamos falando de ideologias, não de realidades.
Uma pessoa que tem um plano de saúde privado razoável irá gastar em torno de R$ 400 por mes ou mais. São R$ 4800 por ano. Nem em dez anos deixaria uma quantia equivalente se tivesse de pagar uma contribuição de 0,1% em sua movimentação financeira como contribuição a saúde.
Continuaria tendo direito a assistencia médica mesmo que perdesse o emprego e não tivesse um centavo no banco. E faria parte de um sistema onde aqueles que tem mais pagam mais. Pode não ser correto do ponto de vista da igualdade alimentado pelo Tea Party. Mas é o justo conforme o padrão ético de muitas pessoas e toda escola progressista de diminuição da desigualdade.
Com frequencia, sempre que tem de enfrentar uma cirurgia delicada o cliente de um plano privado tem de travar uma longa batalha para valer seus direitos, que nem sempre serão respeitados. Nem todos os remédios nem tratamentos que sua doença exige serão oferecidos de forma gratuita. Como acontece também no SUS, poderá ser forçada a lutar por eles na Justiça. Mas o cidadão do plano privado não acha que está sendo roubado quando paga sua mensalidade.
Tampouco fica inquieto quando seus médicos fazem greve para denunciar ganancia patronal. No fundo, recusa-se a acreditar numa realidade matemática: os planos de saúde só podem ficar de pé enquanto não precisam entregar os serviços que cobram. No dia em que você precisa mesmo desses serviços, é expelido dos planos, ou forçado a pagar mensalidades inviáveis para a maioria das pessoas da mesma faixa de risco. Não é maldade. É plano de negócios.
Um raciocínio parecido aplica-se a Previdencia Social, cuja falencia é anunciada periodicamente como uma fatalidade técnica — mas que tem apresentado uma contabilidade menos complicada ano a pós ano, graças a uma política oficial que faz o óbvio e apenas ele: defende os empregos formais, facilita o registro em carteira e multa a empresa que não cumpre suas obrigações.
Nesse terreno dificil, o Tea Party deixa no ar a sugestão de que a aposentadoria privada é uma alternativa séria e que a Previdencia, quanto menos dinheiro tiver, menos roubará. O problema é que as previdencias privadas até podem ser úteis para quem pode pagar por elas, mas todo analista sério sabe que nenhuma oferece os mesmos benefícios, pelo mesmo preço, como o INSS.
Há uma boa razão para nosso Tea Party assumir uma identidade esquiva e fugidia. Seu discurso pode até existir nos Estados Unidos, país com uma história muito diferente da nossa, onde a economia privada atingiu uma força sem paralelo na América ou no Velho Mundo. No Brasil, com uma condição histórica muito diferente, um grau de desigualdade maior e carencias também maiores, o Estado oferece um padrão mínimo de assistencia que não é desprezível, embora seja totalmente insuficiente. Nesse geografia, o Tea Party só pode atuar na sombra, procurando causas universais para interesses bastante privados.
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