Artigo copiado daqui.
6 de maio de 2010 às 19:28
Qual farsa Serra quer?
O que fica claro, olhando desde a Argentina, é que José Serra associa o Mercosul a um valor negativo. Para ele, por outro lado, seria positivo que o Brasil firmasse muitos tratados de livre comércio. Cabe lembrar que o Mercosul não é o paraíso em boa medida porque foi esvaziado de política pela dupla FHC-Menem com a ajuda de Domingo Cavallo, o ministro argentino que adorava as áreas de livre comércio como Serra. O Mercosul é um resultado concreto da construção regional. Outros são a Unasul e o Conselho de Defesa Sulamericano. E a chave dessa estabilidade é a sólida relação entre Argentina e Brasil.
O artigo é de Martin Granovsky, analista internacional argentino e colunista do jornal Página 12.
Martin Granovsky (*), na Carta Maior
Peço um empréstimo aos irmãos brasileiros: poderiam nos enviar um manual para entender Serra? Primeiro ele disse que o Mercosul é uma “farsa”. Depois defendeu a “flexibilização” do Mercosul. Como se flexibiliza uma farsa? Mistério. O que fica claro, olhando desde a Argentina, é que José Serra associa o Mercosul a um valor negativo. Para ele, por outro lado, seria positivo que o Brasil firmasse muitos tratados de livre comércio. Segundo Serra, o Brasil não pode fazê-lo, justamente, por culpa das barreiras que seriam impostas pelo Mercosul.
Esqueçamos o mistério. Segundo dados do Instituto para a Integração da América Latina (Intal), durante 2009 o comércio internacional desabou. As exportações brasileiras para a Argentina, Uruguai e Paraguai, seus sócios do Mercosul, caíram 27,2% e as importações diminuíram 12,2%. Mas um olhar histórico é mais interessante: em 2008, quando a crise internacional já havia começado, as exportações cresceram 25,3% em relação a 2007, e as importações subiram 28,5%.
Mesmo em meio a maior crise desde os anos 30, o valor do intercâmbio com o Mercosul foi de 28,935 bilhões de dólares em 2009. Quase igual à cifra registrada em 2007, antes da crise: 28,978 bilhões de dólares.
Para o Brasil, o Mercosul representou, em 2009, cerca de 10,3% de suas exportações e importações. Nem o Brasil nem a Argentina sofreram em 2009 como a Grécia sofreu, para citar o caso mundial de um país que agora tem que seguir o caminho da contração fiscal e econômica, sofrido já pelos brasileiros com Fernando Henrique Cardoso e pelos argentinos com Carlos Menem. Mas a Grécia está longe de nós. Vejamos um caso mais próximo: o México sofreu mais porque cerca de 80% de seu intercâmbio depende da relação comercial com os Estados Unidos. O Brasil e a Argentina foram menos golpeados pela débâcle e não precisaram de nenhum Tratado de Livre Comércio (TLC) para seguir com sua estratégia de comércio diversificado, entre eles ou com a China.
O Mercosul não é o paraíso em boa medida porque foi esvaziado de política pela dupla FHC-Menem com a ajuda de Domingo Cavallo, o ministro argentino que adorava as áreas de livre comércio como Serra. Mas o Mercosul é um dos vários resultados concretos da construção regional. Outro resultado é a Unasul, que agrupa toda a América do Sul. Outro é o Conselho de Defesa Sulamericano. E a chave da estabilidade sulamericana é a sólida relação entre a Argentina e o Brasil, nosso vizinho com magnitude de Bric. Não é pouco: a região não apresenta nenhum conflito limítrofe importante e reflete uma sintonia majoritária e um nível de paz e previsibilidade que hoje são uma jóia mundial.
Quando a palavra “farsa” aparece em meio a esta construção imperfeita mas persistente convém acender as luzes de alerta. Se Serra elegeu a espetacularidade para se diferenciar de Lula e de Dilma Rousseff, e se, além disso, ignora as construções institucionais coletivas, talvez esteja indicando que na sua opinião os objetivos regionais devem se dissolver em múltiplos TLCs particulares. A aposta a favor do modelo dos TLCs não amortece uma crítica feroz. Tampouco serve para resolver, em um ambiente de negociação dentro da diversidade, crises como as da Bolívia, da Colômbia, da Venezuela e do Equador, ou para dar um horizonte de inclusão com o primeiro encontro de presidentes da América Latina e do Caribe.
Não são gestos retóricos. Quanto mais intensa for a convivência regional mais fácil será negociar em um mundo turbulento. A América do Sul provou que pode manter diferenças com os Estados Unidos, como fez ao rechaçar a Área de Livre Comércio das Américas, e, ao mesmo tempo, evitar um clima de hostilidade infantil com Washington. Brasil e Argentina, para tomar como exemplo os dois sócios maiores do Mercosul, tiveram uma postura comum frente à dívida: desengancharam do Fundo Monetário Internacional, aumentaram suas reservas, abandonaram o modelo aditivo de absorção de capitais e desconectaram o gatilho comum a duas bombas, a dívida interna e a dívida externa. Os dois países propõem o mesmo tipo de reformas democráticas no FMI e em outros organismos multilaterais. E conseguiram que cada diferença comercial fique limitada a uma pequena porcentagem de seu intercâmbio comercial (é inferior hoje a 10% do total) e possa ser negociada sem escaladas políticas.
Com esta política Brasil e Argentina cresceram e diminuíram a indigência e a miséria. O mesmo fez o Uruguai com Tabaré Vázquez primeiro e agora com José Mujica, e é isso que está tentando fazer também o Paraguai com Fernando Lugo. O resultado não está tão mal, se comparado ao de épocas anteriores de recessão ou de crescimento sem distribuição de renda nem aumento de empregos. Se nossas políticas parecem ter sido bastante sérias, por que Serra se opõe a elas? Quererá montar uma farsa? Com FHC e Menem terminamos chorando. E na vida é melhor a jóia.
(*) Martin Granovsky é analista internacional argentino, colunista do jornal Página12.
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