quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Terra Maganize: A questão é: por que articulistas e jornalistas podem falar de certos temas e não podem falar de outros?, pergunta Sírio Possenti

Segue o artigo de Sírio Possenti para o Terra Magazine.

Sírio Possenti

Em geral, prefiro escrever apenas sobre temas em relação aos quais poderia, se necessário, indicar bibliografia, ou seja, questões que estudo ou estudei um pouco (mas detestaria ser chamado de especialista). Ou seja, não quero, nesta coluna, emitir opiniões sobre outros campos. Mesmo assim, muita gente acha que faço isso. Por exemplo, quando comentei o Dicionário Lula, de Ali Kamel, alguns leitores acharam que as opiniões de Ali Kamel eram minhas - especialmente uma de efeito favorável ao presidente (tratava-se do número de palavras que Lula usou em seus pronunciamentos, mais de dez mil, um número para acadêmicos).

Hoje vou sair explicitamente desta rotina para comentar um artigo de Nélson Motta publicado no Estadão de 16/10/2009, que não tem nada a ver com linguagem, pelo menos com os tópicos mais habituais. O título é "Bolivarismo esportivo". Motta diz que os futebolistas equatorianos e bolivianos dão show em brasileiros e argentinos a 3000 metros de altitude e que se vangloriam disso. Mesmo que depois percam ao nível do mar etc.

Uma pequena investigação sobre as atividades de Nélson Motta revela que é produtor cultural, que foi autor de músicas, que escreveu sobre bossa nova. Nada indica que ele seja especialista em fisiologia esportiva ou em qualquer tema conexo. Ou seja, para escrever o que escreveu sobre o assunto que "desenvolveu" em seu texto, não precisou de nenhuma informação técnica. Acho até que não ter informações ajuda artigos assim. Deve ser bom ser pago para recordar aos leitores do Estadão reles fatos esportivos como estes, que todo mundo pode discutir nos botequins.

Mas talvez ele ganhe mais para acrescentar aos lugares-comuns afirmações como a seguinte: "É a influência dos três patetas, Chávez, Morales e Correa, até no futebol. No seu habitat natural, eles vivem a ilusão de que jogam mais e melhor do que os outros, com mais fôlego, mais talento, mais patriotismo, que afirmam sua identidade nacional".

E acrescenta que "é preciso que a CBF trabalhe para reverter esta demagogia populista travestida de igualitarismo, escondendo uma típica malandragem latino-americana que só pode ser entendida como bolivarismo esportivo, seja isto lá o que for". (Como ele pode esperar isso da CBF?).

Também desanca Maradona, que considera um perfeito idiota latino-americano, expressão que designou durante algum tempo todos os que não eram adeptos radicais do neoliberalismo e, no limite, da adoção do dólar como moeda "nacional". Menem instituiu na Argentina a tal paridade, que, de certa forma, vicejou no Brasil nos anos iniciais do Plano Real (ainda lembram?), regida por Gustavo Franco.

A expressão é bem conhecida, e Menem foi o melhor exemplo do que seria o contrário do perfeito idiota, segundo os "intelectuais" que produziram o conceito. Os argentinos sabem bem o que significa, no caso, ser um "sábio" latino-americano. O que explica em parte, pelo menos, que Dieguito prefira Fidel Castro a, por exemplo, Uribe.

Motta critica Maradona também por ter batido uma bola com Morales, quando a Argentina foi jogar em La Paz e levou aquela goleada de 6 a 1 (talvez ele tenha preferência por reuniões político-esportivas como a de Collor com a seleção de 90)!

Pode ser que Maradona seja um perfeito idiota latino-americano. Pode ser que seja verdade que Chávez e Morales sejam tudo isso que Motta repete sobre eles. Admitamos. Mas mesmo que isso não fosse verdade, mesmo que Motta apenas expressasse uma opinião equivocada ou até bestalhona, nada a reclamar. Quem não quer ler o texto dele pode simplesmente mudar de página, ir adiante, à procura de alguma inteligência.

O que é mais difícil de suportar é que Motta faça de conta (ou talvez acredite) que Bolívia e Equador começaram a disputar as eliminatórias para a Copa (e a Taça Libertadores) na "altitude" depois que Chávez, Morales e Correa assumiram os governos nos seus países. E antes deles, quando esses países eram governados pelos "sábios", os brasileiros e argentinos jogavam suas partidas contra eles em quais cidades, hein, Nélson Motta?

Aliás, o que está fazendo Chávez nesta lista, se ele mesmo, Motta, só fala das partidas de bolivianos e equatorianos contra brasileiros e argentinos? A que altitude a Venezuela joga suas partidas? Bem que ele poderia informar, mas então seria necessário que a coluna tivesse outra marca além da má fé ou da ignorância.

Mas é bom textos assim sejam publicados. Pelo menos, fica-se sabendo quem é mesmo e como é o idiota latino-americano perfeito.

No mesmo estilo Nélson Motta, o Jornal Nacional de 21/10/2009 informava que mais um presidente latino-americano obtinha o direito de reeleger-se. Era Ortega, da Nicarágua. Bonner fez rápida retrospectiva: Chávez, depois, Morales, depois, Correa, agora Ortega. Em voz mais baixa - explica-se! - informou que Uribe está tentando um terceiro mandato (de leve)!

Mas essa é de fato uma notícia para o ouvinte meio idiota latino-americano para o qual Bonner já declarou que faz seu jornal: um cara do tipo Hommer Simpson. Se não fosse assim, talvez destacasse Uribe, e informaria que as reeleições começaram de fato com Menem, Fernando Henrique e Fujimori. Bem antes, portanto, do que ele cita, e com gente de outro calibre ideológico.

Um pouco de verdade (jornalística) não faria mal a ninguém.

PS 1 - Pensando bem esta coluna não é sobre assuntos estranhos a este espaço. A questão é: por que Motta e Bonner podem falar de certos temas ou pessoas e não podem falar de outros? Uma hipótese: burrice, desconhecimento de fatos banais. Mas esta deve ser descartada: sabem muito bem que as coisas não são como eles as contam. Segunda hipótese: má fé, sacanagem. Não deve ser excluída, mas pode não ser a explicação final.

A explicação pode simplesmente residir no fato de cada sujeito diz o que pode dizer e esquece o que não pode dizer. Freud pode explicar, em certos casos. Mas quem explica os dois casos comentados aqui são provavelmente os teóricos da ideologia e de sua relação com os discursos. Eles dirão que há coisas que simplesmente não podemos dizer. A política está cheia de casos assim.

Mas os jornalistas não têm compromissos com os fatos? Não, responderão os "ideólogos". Só com os que interessam!

PS 2 - Acaba de sair pela Parábola meu livrinho Língua na mídia, uma coletânea de colunas do tipo das que publico aqui semanalmente. Trata-se de textos que analisam o que jornalistas e outros -istas dizem sobre fatos de língua.

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso e Questões para analistas de discurso.

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