quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Bolha imobiliária?

Abaixo, o trecho do boletim Conjuntura em Foco, do IPEA, que trata dos riscos de uma bolha imobiliária no Brasil. A íntegra está disponível aqui (em PDF).

Boletim Conjuntura em Foco do IPEA: Crédito às pessoas físicas, inadimplência e a crise econômica internacional foram os temas principais (trecho)

O crescimento do crédito e, mais recentemente, da inadimplência na economia brasileira vem suscitando preocupações com a evolução do atual nível de endividamento das famílias. Por isso, torna-se importante entender se o movimento recente dessas séries no Brasil assemelha-se ao ocorrido em determinados países, como, por exemplo, os Estados Unidos – onde a expansão irresponsável do crédito resultou na formação da chamada “bolha imobiliária”. Não se pretende, neste texto, empreender uma análise minuciosa sobre os determinantes da crise internacional, as apenas examinar de forma comparada o recente fenômeno do avanço do crédito e da inadimplência na economia brasileira.



Nesse sentido, voltando ao caso dos Estados Unidos, no período anterior a 2007, o sistema financeiro concedia crédito (notadamente, financiamento imobiliário) a pessoas físicas que não percebiam renda compatível com o serviço da dívida (subprime). Até mesmo imigrantes ilegais, que não tinham documentos do país nem comprovação formal de renda, conseguiam financiar a compra da casa própria com certa facilidade. Com a ampliação do crédito, o preço dos imóveis – num cenário de crescimento econômico – aumentou continuamente ao longo de vários anos.

A legislação permitia – e o sistema financeiro estimulava – que a pessoa que tivesse financiado a compra de um imóvel pudesse renegociar o contrato de empréstimo (muitas vezes com outro agente financeiro), com base nas novas cotações do mercado imobiliário, obtendo, assim, volumes superiores de crédito – o percentual de contratos de refinanciamento em que isso acontecia chegou a alcançar 72,9% do volume total, como mostra o gráfico 1.

Gráfico - Parcela dos refinanciamentos imobiliários dos Estados Unidos na qual o devedor recebeu dinheiro do banco com o novo contrato (cash out refinancing)
Gráfico 1
Assim, as famílias passaram a alavancar suas posições devedoras com vistas à ampliação do consumo e/ou à aquisição de novos imóveis. Quando, por uma série de razões, os preços dos imóveis começaram a cair, a dinâmica se inverteu. Os bancos executavam as garantias, vendiam imóveis, não conseguiam reaver todo o saldo devedor e, ainda, aprofundavam a tendência de queda dos valores imobiliários. Desse modo, a inadimplência de contratos de crédito no setor imobiliário da economia norte-americana tornou-se um importante componente da crise econômica (gráfico 2).

Gráfico - Taxa de inadimplência do sistema financeiro dos EUA
Gráfico 2
No caso da economia brasileira, o crédito tem crescido a taxas elevadas há alguns anos. Não obstante, o endividamento das famílias com o sistema financeiro (medido em relação à renda acumulada dos últimos doze meses) ainda é baixo comparativamente ao nível alcançado nas regiões atualmente em crise (gráfico 3). Mesmo o crédito imobiliário, que cresceu bem acima da média das demais modalidades nos últimos anos – passando de 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) no início de 2007, para 4,5% do PIB no final de 2011 e 5,5% do PIB em junho deste ano – ainda se encontra num patamar muito inferior ao apresentado pelos Estados Unidos (65% do PIB) e mesmo por países emergentes, como, por exemplo, a África
do Sul (27% do PIB). [1]

Gráfico - Endividamento das famílias com o sistema financeiro (EUA, Reino Unido, Africa do Sul e Brasil)
Gráfico 3
Na verdade, o dado que suscita maior preocupação (em função do forte ritmo de crescimento nos últimos anos e do alcance de um patamar elevado na comparação internacional) é o de comprometimento de renda das famílias com o serviço das dívidas (juros e amortizações) junto ao sistema financeiro, o qual, não obstante, se mantém em torno de 22% desde o segundo semestre de 2011 (gráfico 4). De acordo com dados divulgados no relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre o Brasil (no 12/191 de julho de 2012), o nível de comprometimento da renda no Brasil está alto na comparação com outros países emergentes da América Latina; por exemplo, em relação ao México (em torno de 5%) e Chile (algo como 15%) – no caso dos Estados Unidos, o nível de comprometimento da renda estava em 11% no primeiro trimestre deste ano, segundo dados do FED.

Gráfico - Comprometimento de renda das famílias com o serviço das dívidas com o Sistema Financeiro Nacional - Brasil
Gráfico 4
Uma hipótese que tem sido aventada no debate recente é que esse elevado grau de comprometimento da renda, juntamente com a alta da taxa de inadimplência (examinada a seguir), pode estar limitando o avanço do mercado de crédito no Brasil como reação à flexibilização da política monetária.

Por outro lado, de acordo com dados do BCB, o saldo das parcelas a vencer no curto prazo representam 43% das dívidas de pessoas físicas com o sistema financeiro. Se forem acrescentados também os valores referentes ao crédito com vencimento no médio prazo (361 a 1.088 dias), chega-se a mais de 73% do total. Isso significa, portanto, que o elevado grau de comprometimento da renda das famílias no Brasil, da mesma forma que cresceu rapidamente, também pode cair em pouco tempo. De fato, os últimos dados disponíveis, de maio de 2012, apontam para uma gradual redução desse indicador. Em primeiro lugar, tal queda tende a se acelerar com a trajetória declinante das taxas de juros e o processo crescente de renegociação das dívidas. Em segundo lugar, o próprio denominador da razão constituinte desse indicador, o rendimento do trabalho, tem permanecido em alta apesar do agravamento recente da crise internacional. Finalmente, o aumento da participação do crédito habitacional tende a aumentar o prazo médio de pagamento das dívidas e, com isso, a reduzir os desembolsos mensais com serviços da dívida em relação ao nível de endividamento da população.

Os dados sugerem que o aumento recente do grau de comprometimento da renda com juros e amortizações também está positivamente correlacionado com a alta da taxa de inadimplência (gráficos 4 e 5). Entretanto, para melhor entender o movimento recente de alta da inadimplência na economia brasileira, torna-se necessário, antes de tudo, examinar as mudanças institucionais implantadas nos anos 2000, fundamentais para o avanço do crédito no período subsequente. Dentre tais mudanças, destacam-se:

• a regulamentação do crédito consignado (Lei no 10.820, de 17/12/2003), que ampliou o acesso de trabalhadores com carteira assinada e aposentados a uma linha de crédito com juros bem menores que os do crédito pessoal tradicional;
• a criação do Sistema de Informações de Crédito do Banco Central (SCR), que deu mais segurança ao sistema financeiro. [2] A coleta de informações para o SCR iniciou-se em maio de 2002;
• a Resolução no 3.005, de julho de 2002, do BCB produziu alterações na contabilização do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), que implicaram o aumento da parcela de recursos da poupança destinada ao financiamento habitacional;
• a aprovação da Lei no 10.931, de 2/8/2004, que disciplinou a aplicação da alienação fiduciária criada em 1997, simplificando a retomada do bem dado como colateral para o empréstimo, e instituiu o valor incontroverso – instrumento que estabelece, nos casos de disputas judiciais, a continuidade do pagamento da parte da prestação não contestada; e
• a mesma Lei no 10.931 instituiu o patrimônio de afetação, que consistiu na adoção de um patrimônio próprio para cada empreendimento, e o regime especial de tributação (RET) do patrimônio de afetação, para blindar o empreendimento em relação a débitos do empreendedor dando segurança aos compradores de imóveis na planta em caso de problemas financeiros da construtora.

Gráfico - Taxa de inadimplência acima de 90 dias em relação ao total da modalidade das operações de crédito
Gráfico 5
Essas importantes reformas institucionais tiveram impactos diferentes em cada categoria de crédito. A normatização do crédito consignado resultou numa maior oferta de crédito pessoal com juros significativamente mais baixos do que aqueles cobrados nos empréstimos sem garantia. O aumento da participação do crédito consignado reduziu o risco e, por conseguinte, a taxa de inadimplência do crédito pessoal. Como pode ser visto no gráfico 5, apesar das oscilações conjunturais, a inadimplência do crédito pessoal apresenta uma tendência de queda nos últimos anos.

Note-se que, desde o início de 2011, o movimento geral de alta da inadimplência tem sido liderado pelo crédito para a aquisição de veículos. Nessa categoria ocorreram mudanças comportamentais importantes tanto na demanda por crédito, devido aos crescimentos da renda e do grau de formalização do trabalho, como na sua oferta, impulsionadas pelas alterações de legislação já mencionadas.

O estudo de Assunção, Benmelech e Silva (2012) [3]utiliza um modelo econométrico estimado a partir de microdados fornecidos por um dos maiores bancos privados do Brasil para analisar justamente os impactos que a reforma legal de 2004 teve sobre o crédito automotivo.

Os modelos estimados no referido estudo sugerem que as mudanças legais de 2004 resultaram em empréstimos maiores com spreads menores, prazos de vencimentos mais longos, maior exposição ao risco (por parte dos bancos) e, consequentemente, numa maior “democratização” do crédito – permitindo que tomadores com classificação mais arriscada e menores rendas obtivessem financiamentos associados à aquisição de carros mais novos e mais caros. Ou seja, verificou-se um processo de inclusão no mercado de uma parcela da população sem acesso ao crédito de automóveis.

O problema é que, juntamente com a ampliação desse acesso, cresceu também o número de tomadores sem conhecimento dos custos envolvidos na manutenção dos veículos (combustível, seguro, revisões etc.) e, portanto, de inadimplentes. Os bancos e montadoras, por sua vez, chegaram a oferecer financiamentos sem entrada, com prazos longos (acima de 60 meses) e até mesmo o chamado “troco na troca”, onde o financiamento era maior que o valor do carro dado como parte do pagamento.

Antecipando possíveis problemas com financiamentos deste tipo, o BCB incluiu entre as medidas macroprudenciais adotadas em dezembro de 2010 restrições de prazo (máximo de 60 meses) e percentual mínimo de valor de entrada (de acordo com o prazo de financiamento).

Cumpre destacar aqui, no entanto, que as dificuldades envolvidas no financiamento para compra de veículos não têm alcance sistêmico ou estrutural. Desde o segundo semestre do ano passado, os bancos passaram a ser mais criteriosos nas suas concessões de crédito, já restringidas, por outro lado, no âmbito das medidas macroprudenciais. De acordo com o Relatório de Estabilidade Financeira (REF) do BCB de setembro de 2011 (p. 18), “as medidas macroprudenciais implementadas desde dezembro de 2010 foram eficazes ao corrigir a velocidade de crescimento do crédito, evitar o alongamento excessivo dos prazos e, no caso específico do financiamento de veículos, melhorar o loan-to-value (LTV)”[4].

Portanto, o movimento da inadimplência nesse tipo de empréstimo aponta para uma tendência de redução gradual.

Gráfico - Saldo das operações de crédito do sistema financeiro para pessoas físicas
Gráfico 6
No segmento do crédito imobiliário, por sua vez, as reformas institucionais tiveram maior amplitude com melhores resultados. A expansão do crédito habitacional ocorreu a um ritmo mais intenso que o do crédito para a aquisição de veículos (tornando seu saldo superior em termos absolutos), ao mesmo tempo em que a taxa de inadimplência no segmento apresentou quedas significativas ao longo de todo o período pósreformas (gráficos 6, 7 e 8).

Gráfico -  Participação percentual de categorias selecionadas no saldo das operações de crédito
Gráfico 7

Gráfico - Situação dos contratos de financiamento habitacional do Sistema Brasileiro de Crédito
Gráfico 8
O elevado déficit habitacional ainda presente no Brasil faz com que a demanda por crédito imobiliário seja, também, ainda muito grande. Por outro lado, a compra do imóvel costuma ser uma decisão mais bem planejada pelas famílias do que a envolvida na aquisição de um automóvel.

Os bancos no Brasil também são mais cuidadosos ao analisar propostas de financiamento imobiliário. Enquanto o processo de análise para a liberação do financiamento de um veículo demora, em geral, um ou dois dias, o crédito habitacional é usualmente concedido somente depois de uma lenta e criteriosa avaliação, com duração de semanas e o envolvimento de diversas etapas (avaliação do imóvel por um perito, levantamento de informações sobre o dono do imóvel etc.).

Outra diferença importante entre os dois segmentos, e que ajuda a explicar a diferença de comportamento entre as respectivas taxas de inadimplência no período pós-reformas, é o fato de a casa própria constituir um bem essencial do ponto de vista das famílias, enquanto o automóvel é encarado, muitas vezes, apenas como um item de conforto. Quando há uma redução de renda e/ou gastos inesperados no setor das famílias, a tendência é priorizar o pagamento de despesas essenciais em detrimento de itens de conforto. Com a simplificação do processo de retomada do bem dado como garantia, o pagamento em dia da prestação da casa própria tornou-se ainda mais importante.

Outro motivo para uma redução tão expressiva da inadimplência dos financiamentos habitacionais é o efeito composição. Com o crescimento acelerado desse segmento de crédito, houve uma rápida redução da participação dos contratos firmados no período de inflação alta, que têm taxas de inadimplência superiores a 50%.

Uma variável que tem efeitos importantes sobre as taxas de inadimplência dos diferentes segmentos de crédito é a taxa de desemprego, que conta com um cenário positivo para este ano. Em que pese o efeito da crise internacional em alguns setores da economia brasileira, o mercado de trabalho vem mostrando um comportamento bem favorável, ao longo dos últimos anos. Para os próximos meses, a tendência é de manutenção deste cenário positivo para o emprego, possibilitado, sobretudo, pela melhora no desempenho da atividade econômica no país ao longo do segundo semestre deste ano. Desta forma, a taxa de desocupação deve permanecer em níveis historicamente baixos.

No que diz respeito aos rendimentos reais, a expectativa é de uma desaceleração nas taxas de crescimento, uma vez que a maior parte do impacto dos reajustes do salário mínimo já foi dissipada. Entretanto a trajetória ascendente dos salários deve continuar.

Outra variável que indica uma tendência de queda da taxa de inadimplência é o indicador de perspectiva de inadimplência do consumidor da Serasa Experian. Como mostra o gráfico 9, esse indicador está em queda, abaixo do nível 100 (nível de equilíbrio de longo prazo), e mostra um comportamento bem próximo ao da taxa de inadimplência do BCB (constituindo um bom indicador de antecedente desta última).

Gráfico - Taxa de inadimplência das pessoas físicas do BCB versus indicador de perspectiva de inadimplência do Serasa
Gráfico 9
Em síntese, a situação atual do mercado de crédito no Brasil é bem diferente da observada nos países, como os Estados Unidos, em que houve crise do sistema financeiro. O volume de crédito ainda é relativamente baixo e de curto prazo. Com a tendência de continuação do cenário positivo no mercado de trabalho e a redução da taxa de juros, o indicador de comprometimento da renda com o serviço da dívida e a taxa de inadimplência devem apresentar trajetórias descendentes. Nesse sentido, ainda, outras diferenças positivas marcantes no caso brasileiro são a solidez do sistema financeiro, o maior cuidado dos bancos na concessão de crédito e o menor grau de alavancagem das famílias.


1. Os dados de crédito imobiliário do Brasil foram calculados com base nas informações do Banco Central do Brasil (BCB) – crédito livre e direcionado. Os dados dos
Estados Unidos e da África do Sul são de 2011 e foram obtidos no site da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
2. “O SCR é um instrumento de registro e consulta de informações sobre as operações de crédito, avais e fianças prestados e limites de crédito concedidos por instituições financeiras
a pessoas físicas e jurídicas no país” (Banco Central do Brasil. SCR, 2004, documento disponível em:<http://www.bcb.gov.br/fis/crc/ftp/SCR_VisaoGeral_v1.00.pdf>).

3. Assunção, J. J.; Benmelech, E.; Silva, F. S. S. Repossession and democratization of credit. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, 2012, 35 p.
(Working Paper, no 17.858).
4. Loan-to-value é a razão entre o valor do financiamento contratado e o valor do bem dado como garantia.

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